Deitada em uma cama bagunçada, Nina olhava para o teto com aquele sentimento incômodo que lembrava a sensação de estar com a alma fora do corpo em uma viagem violenta e desagradável por um mundo cheio de perdas. Naquela aventura sensorial Nina já havia perdido o herói da história, o vilão tinha tomado a cidade e cometido genocídio. A personagem principal? Tinha decidido jogar tudo para cima e ir assistir séries na Netiflix, pois a partir dali tudo o que viesse era lucro.
- Tristeza - disse a voz na cabeça de Nina. - O nome do sentimento que você esta procurando.
Ela respirou fundo. Olhou o celular mais uma vez. Não havia nenhuma mensagem. Nada exatamente fora do comum para mais um sábado solitário.
- Não fica nessa - continuou a voz. Aquilo que falava com ela, na cabeça dela, tinha uma voz doce, estranhamente sensível, parecia afável, parecia amigo. Talvez o amigo que ela tanto precisava.
Nina colocou o fone de ouvido. Apertou um botão de play no celular e começou a tocar Beat The Devil's Tatto do Black Rebel Motocycle Club. Levantou da cama. Não tinha vontade de fazer aquilo, mas para ela não havia escolha. Não conseguia mais ficar do jeito em que estava também. Precisava se mexer. O corpo dela tinha necessidades.
Isso era uma questão importante. Como atender a uma vontade que nem mesmo ela sabia qual era? Dúvidas filosóficas que pessoas de vinte e poucos anos tinham, diria um velho arrogante que acredita realmente que viu de tudo.
Ela olhou ao redor. O quarto que tinha alugado estava mesmo em desgraça. Roupas espalhadas pelos cantos, cigarros fumados e latinhas de cervejas pelo chão, além do retrato de um certo rapaz que tinha sido usado como cinzeiro. Nina percebeu a sorte de não ter começado um incêndio ou uma praga de ratos ou uma epidemia de ebola por conta das condições de limpeza daquele lugar e saiu pela porta de PVC do local em que vivia.
O quarto ficava em uma espécie de galpão com diversos cubículos divididos por placas de madeira vagabunda onde as pessoas moravam. Ao todo eram 10 quartos com cerca de 17 pessoas dividindo o mesmo triste banheiro.
- Isso mesmo! Existe um mundo lá fora! - disse a voz que parecia empolgada. As mãos da garota tremiam um pouco, ela não sabia explicar o motivo, mas achava que tinha relação com o que a voz tinha dito.
Tristeza.
Não era culpa do rapaz da foto queimada de cigarro, infelizmente. Ela o considerava um pau no cu naquele momento, mas não era culpa dele. Ela recusava a ideia de que fosse, afinal, sofrer por conta de alguém que está chupando outra pessoa é algo contraproducente. Sério, o cara da foto está enterrado na vagina de uma garota a quem passou a chamar de amor. Uma garota que não é nina.
Mas rejeitar coisas burras não é um instinto racional.
Nina fingiu que não tinha notado, mas havia saído de casa com seu pijama. Uma camisa azul claro que cobria toda parte superior do corpo. A calça de um tecido leve parecia ser vários números maiores que o dela.
Acendeu um cigarro e começou a sua tradicional caminhada pela noite da cidade. Era um ambiente que exalava decadência e oportunidade de fazer merda, uma espécie de cenário tirado de um conto do Charles Bukowski, mas na vida real e com desgraçados de verdade.
- Menina Ninaaa - disse a pessoa que surgiu. A dona da voz vestia uma camisa resgada e cheia das manchas e tinha olhos tristes, embora todo o resto do corpo dela tentasse dizer ao contrário. - Esse cigarro que você tá fumando tem irmãos?- perguntou.
- Claro, Silas - respondeu Nina ao tirar uma carteira do bolso. - Pega aí.
Silas acendeu o cigarro e tragou aquela coisa com vontade, depois cuspiu a fumaça com um gesto espalhafatoso.
- Cigarro? Hum! Você deveria usar a faca que te dei nesse desgraçado! - bradou a voz na cabeça de Nina. Agora aquilo não parecia amigável, ou doce. Era algo mais doído e cansado.
- Menina Ninaaaa! Você é a melhor pessoa desse mundo! - comentou Silas. - Queria que você se cuidasse mais, esse lugar é perigoso.
Ela escutou uma risada na cabeça.
- Eu vou ficar bem, Silas - respondeu enquanto voltava a caminhar. - Vai ficar tudo bem.
O pijama de Nina não era muito eficiente para eliminar a sensação de gelo do ar da noite. O cigarro que ela fumava a aquecia muito mais, além de dar a sensação de que alguém a acompanhava. Ou era a voz na cabeça dela que tinha esse efeito? Não sabia mais responder.
A verdade era que aquilo, a voz, a acompanhava desde o início da adolescência. Sempre tecendo comentários estranhos e violentos sobre a vida. Recentemente a voz começou a falar sobre mortes, mais precisamente como matar pessoas parecia uma boa ideia.
Foi então que Nina decidiu que era uma boa ideia parar de conversar com aquilo, desde então ela apenas ignorava os sons na cabeça.
- Isso é idiota - disse Nina para si. - É hora de voltar.
Ela deu meia volta e então o celular dela começou a tremer. Estava vibrando . Estava recebendo uma mensagem. O Coração dela acelerou. Seria o rapaz da foto que ela usou como cinzeiro? Algum colega da faculdade? O pai finalmente a ajudaria a pagar um tratamento médico?
" Ainda da tempo para usarmos a faca que eu te dei" dizia o texto na tela do celular.
Nina começou a chorar. Ela não sabia se aquela imagem era real ou não.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Nós
Mystery / ThrillerUma estranha jornada pela mente de alguém que não pode confiar em seus próprios pensamentos. Sozinha e sem ter a quem recorrer, Nina irá lidar com o problema como puder, mesmo que isso envolva fazer coisas ruins ou esquecer quem é, afinal, quando...