A Primeira Noite

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Estou sentado ou deitado... quem se importa? O fato é que eu não durmo bem há meses. Eu não sonho mais. Eu não vivo mais.

É tarde da noite. A televisão está desligada. Livros se amontoam ao meu redor. E o fato é que eu escrevo.

Eu escrevo uma história de um Rei há muito tempo esquecido. Um Rei de poderes inimagináveis, cuja extensão alcança os confins da escuridão. Um Rei de pele de mármore, cabelos de ébano e olhos da noite. Um Rei que me abandonou.

Eu estou sozinho e ouço o relógio da cozinha batendo, com seu tique-taque, tique-taque, tique-taque sombrio e monótono e triste e monótono e sombrio e monótono...

Bom, eu cansei. Ou melhor... Eu mudei de ideia. Isso não é para ser uma história.

Isto é uma carta, um aviso, um Adeus.

Talvez eu tenha cansado. Eu não mais escreverei para meu Rei.

Há uma caixinha de remédios ao meu lado. Medicamentos muitíssimo fortes. Eu tomo um comprimido. Depois outro. E mais outro. Lá se foi a caixinha inteira e o tempo passa a desacelerar. Tudo fica devagar e eu tenho plena consciência de que tudo ficará bem, muito em breve...

Um enjôo me atinge. Uma vertigem. Uma tontura. Uma falta de ar. Uma escuridão artificial provocada pela diminuição dos 5 sentidos.

Tique-taque, tique-taque, tique-taque

Tique----------taque , tique----------taque

Tique                       -                         taque

Sinto o cheiro de flores. Lavandas e rosas.

Sinto um vento vindo das paredes.

De repente as luzes piscam e um véu de escuridão e trevas corta a sala. Um corte, uma ferida, na frágil parede da realidade.

Tique-taque, tique-taque, tique-taque, tudo normal, tudo voltando.

Ele está aqui e me encara com ternura.

- Por quê me abandonaste, Morfeus?! - grito ao meu Rei - Por quê?!

Seus olhos como estrelas à meia-noite me encaram mais intensamente. Seu brilho me lembra de como era no início do universo e me lembra do sopro que iniciou o mundo.

Seus cabelos esvoaçam suavemente com os ventos vindos de um mundo de sonhos. Suas vestes me lembram chamas negras.

Sua presença me faz lembrar de sonhos infantis.

Eu o desafio novamente:

- Por quê me deixaste aqui? Para morrer? Eu criei sonhos e histórias de vida e morte! Eu criei deuses e demônios de luzes e trevas! Criei religiões e religiosos para que a vida pudesse valer a pena! Tudo isso, Morfeus, eu criei em vosso nome!

Ao concluir minha deplorável demonstração de boas-vindas, vejo uma lágrima escorrendo em seu rosto esbranquiçado e logo me arrependo de desafiá-lo com minha astúcia. Ele nunca deve ter feito nada disso por mal...

Minhas mãos, até então dormentes pelos remédios mortais, estão voltando ao normal. Eu vou viver por mais tempo? É ele quem me impede de morrer?

Segurando seu pranto nas brechas do sombrio universo, Morfeus dirige a palavra a mim:

- Sou eu quem escreve sua história e garanto que ela está apenas começando.

Sua mão se ergue até a altura de meus olhos e sua areia dos Sonhos é soprada em minha direção...

Eu durmo.
Eu sonho.
Eu me preparo para viver.
E agradeço.
Mas também o odeio por isso.

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⏰ Última atualização: Jun 07, 2020 ⏰

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