1970

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Verônica se sentia muito confortável, estava deitada, o corpo todo relaxado, sentia algo quente e macio na pele, a cabeça e olhos pesados, não estava dormindo, apenas deitada de olhos fechados, descansava ouvindo a música e as vozes ao seu redor. Alguém segurou em seu braço e começou a puxá-lo, ela resmungou e abriu um dos olhos vislumbrando uma Letícia com cara de brava.

- O que você está fazendo Verônica? - Letícia esbravejou, dizendo seu nome em um tom mais agudo que o resto da frase.

- Relaxando -  ela sorriu e seu braço foi puxado com força - ai! O que foi?

- Levanta! - puxou mais uma vez e a amiga cedeu, lhe ajudou a se levantar e a segurou pelos ombros para que não caísse, Verônica não conseguia manter os olhos abertos e a cabeça levantada por muito tempo - Nica, abre os olhos - preocupada, a chamou até ter certeza de que ela estava completamente consciente - quem é aquela? - Letícia apontou para uma pessoa deitada no sofá, mas Verônica estava zonza e só conseguia ver cabelos dourados, o resto era um borrão.

- Sei lá Letícia - se irritou - preciso sentar, estou tonta.

- Como não sabe? Você estava deitada em cima dela - começaram a andar - vamos, você precisa de água.

Chegaram a cozinha, agora mais cheia e abafada que antes, Verônica se sentou no balcão ao lado de um pote de rosquinhas de coco. Esfregou os olhos e os dedos ficaram sujos de sombra brilhosa, descobriu que tinha sede quando Letícia lhe entregou um copo d'água, Luis também apareceu e colocou um pano no pescoço da namorada. Em volta da mesa a produção de drinks ainda funcionava a todo vapor, pegou uma rosquinha para cada dedo e as fez de anel, olhou pela janela para os fundos onde vários meninos fincavam fogos de artifício na grama.

- Pra que isso? - apontou para o pano com uma mão enquanto comia uma rosquinha do dedo indicador da outra.

- É gelo - respondeu entediada e se escorou na bancada ao seu lado - você está bem? Acho que bebeu demais.

- Nós duas bebemos muito, garota - comeu a rosquinha do dedo anelar - estou bem, com muita sede apenas.

A música parou, por um momento todos vaiaram, então Juliana subiu na mesa de centro da sala e gritou tão alto que sua tia acordou assustada e derramou uma bebida amarela misturada com água de gelo derretido na garota loira que dormia ao seu lado, esta também acordou e olhou carrancuda para a senhora.

- Desculpe interromper! - Juliana parecia grandiosa naquela mesa, pensou Letícia com rancor, postura perfeita, sorriso perfeito, até segurava o copo de um jeito perfeito - vamos todos para o fundo, falta um minuto para a meia noite e teremos nossos próprios fogos!

Os jovens gritaram, a música voltou, mas ninguém pareceu se importar, todos correram em desordem para as portas, muitos passaram por ela e Verônica, que continuaram sentadas esperando o caminho para os fundos ficar livre. Apenas uma não seguiu a multidão, a menina de cabelos loiros, que tentava secar a calça social com o casaco de alguém. Letícia manteve o olhar atento nela o resto da festa.

Uma garota ruiva das sobrancelhas castanhas que Verônica não conhecia parou quando as viu, ela estava acompanhada do rapaz que preparou drinks a maior parte da noite, um rapaz alto e magrelo do cabelo cor de mel ondulado até o ombro.

- Oi Letícia!  - ela parou para cumprimentá-la - este é o Carlos, meu amigo.

Os três começaram a conversar sobre ajudas e banheiros quando Verônica olhou para cima e se perdeu olhando para o teto, só foi voltar a realidade quando sentiu as rosquinhas escorregando de seus dedos e caindo no chão. Pegou mais no pote e se limitou a trocar poucas palavras de cortesia com Carlos e a garota que descobriu se chamar Maria, sua garganta queimava e ela preferiu manter a boca fechada. Sentiu um alívio quando os dois saíram em direção aos fogos e tentou dizer a Letícia que não se sentia bem, mas a amiga se apressou para o gramado a arrastando pelo pulso.

                                                                          ***

- Como assim você nao sabe como foi parar em cima de outra pessoa? - antes de saírem, Verônica precisou tomar mais três copos de água para não vomitar, suas bochechas queimavam e os olhos estavam vermelhos, Letícia parecia preocupada.

- Já te disse, fui pro sofá quando estava cansada, a tia da Ju acordou, a gente conversou um pouco e várias pessoas se sentaram e levantaram no meu lado.

- Você ficou bêbada e dormiu no meio da festa, sozinha.

- Eu não estava dormindo - aquilo tranquilizou Letícia - estava descansando os olhos, inclusive mordi o dedo de uma pessoa que ficou cutucando minha bochecha.

- E ainda assim não sabe como foi parar em cima daquela garota.

- Nem sabia que era uma garota, levantei enxergando tudo tremido - disse sem pensar, e a resposta não agradou Letícia que fez bico.

Um assobio cortou o ar ao passo que os fogos eram acesos e explodiam no céu, cães latiram em resposta, e pessoas se abraçaram enquanto o céu se iluminava de cores. "Feliz ano novo", "feliz 1970", "é ano novo", eram gritados por todos os lados, Luis abraçou e beijou a namorada antes de sair pulando com outros rapazes, Verônica encarou longamente a cara emburrada de Letícia antes de lhe apertar num abraço e também lhe desejar feliz ano novo.

- Não vai começar uma nova década de cara amarrada comigo, vai? - ela a chacoalhou.

- Ai tá bom - Letícia substituiu o bico por um sorriso - feliz ano novo Nica - e a abraçou de volta.

Muitos abraços depois, a maioria deles com gente que não conhecia, Verônica ouviu barulho de sirenes, e a cada segundo que se passava mais pessoas as ouviam também, Luis se juntou a elas com um rosto sério e segurou Letícia pelo braço.

- Vamos antes que batam aqui - disse e os três seguiram rápido até o carro, muitos fizeram o mesmo, ninguém sabia quando uma festa qualquer seria confundida com uma reunião politica, e naquele interior, longe da cidade grande era muito mais fácil esconder os "erros policiais".

Letícia ligou o rádio, estavam tocando uma seleção dos Beatles enquanto o locutor desejava prosperidade aos ouvintes, o carro tremia na estrada de terra e ouviam-se tiros ao longe, algumas pessoas preferiam balas a fogos. Verônica tirou os sapatos dos pés doloridos e deitou no banco, a noite havia ficado nublada, esticou os braços e sentiu uma sensação engraçada no pulso. Ignorou e fechou os olhos, cantarolando junto do rádio.

"Doesn't have a point of view

Knows not where he's going to
Isn't he a bit like you and me?
Nowhere man please listen
You don't know what you're missing"

Somos tão jovensOnde histórias criam vida. Descubra agora