Observei a casinha por um longo tempo. Era surreal demais!
A casinha era exatamente isso, uma casinha de madeira, há quase um quilômetro da casa imensa. Era tão baixa que alguém precisaria se abaixar para entrar nela, até tinha uma pequena janela. Dentro, havia algo parecido com um caixote de madeira com tampa e dois buracos lado a lado na tampa.
Pensei um pouco sobre os buracos. Pra que dois? Seria buraco para líquidos e buraco para sólidos? Ou seria para interação social. Você convida alguém para ir até a casinha e bate um papinho enquanto faz... a oferenda?
Por que dois buracos?
Não havia outra forma de descobrir. Tinha que perguntar.
— Por que tem dois buracos?
Ian me fitou com um pouco de constrangimento no rosto.
— É uma ideia modernista. — por um momento, pensei que ele estivesse me gozando. — Substitui muito bem os...penicos. Mas a função é a mesma. Imagine que aquele buraco é um penico e...
— Não. — eu ri. Não pensava em penicos desde... Bem, nunca! — Eu sei pra que servem os buracos. Só não entendi o porquê de dois deles. Supõe-se que uma pessoa por vez use a casinha, certo? — minha voz denotou todo meu horror à menção da palavra casinha.
— Sim, para uso individual, mas pode haver emergências. — ele olhava pra todo lado, menos para mim. — Imagine que a casinha esteja ocupada e, digamos... uma criança precise usá-la também. Acomoda duas pessoas, se for necessário.
— Sei. Então não seria melhor ter duas casinhas separadas, com apenas um buraco em cada uma delas em vez de apenas uma casinha com dois buracos? — indaguei meio enrolada.
Suas sobrancelhas arquearam. Ele entendeu meu ponto.
— Na verdade seria sim. — ele disse espantado.
— Imaginei. — e, aparentemente, fui a única.
Depois, contemplei outro dilema. Supondo que eu tivesse usado a casinha. Supondo que tivesse terminado o que fui fazer ali e quisesse voltar para minha vida. Eu precisaria de algumas coisas...
— Ian? — minha voz tremeu um pouco.
— Sim, senhorita Sofia?
— Você usa a casinha, certo?
— Humm, certo. —confirmou, inseguro.
— Então você sabe o que fazer depois. — eu disse, arqueando uma sobrancelha. Ele corou.
Meu Deus, ele era tão estranho! Aposto que não existia coisa alguma no mundo que fizesse o Rafa corar. Ou até mesmo a Nina! Humm... Eles eram perfeitos um para o outro, eu tinha que admitir.
— Depois de usar a casinha, vou precisar de... — me interrompi sugestivamente, esperando que ele compreendesse e completasse minha sentença. Rezei fervorosamente para que a historia com os sabugos fosse apenas lenda.
— Ah, isso! É para isso que serve aquele pé de alface ali no canto. Todos os dias algum criado coloca um fresco.
Olhei para Ian como uma idiota, tentando entender o pé de alface e sua conotação. Então, uma gargalhada histérica explodiu de minha boca, não pude evitar.
Pé de alface como papel higiênico! Sem agrotóxicos ainda por cima! Ao menos eram lavadas primeiro? Os ecologistas iriam adorar essa ideia. Totalmente biodegradável!
Ian me observou, os olhos assustados. Deduzi que ele pensava que eu era louca. E eu o apoiava incondicionalmente neste caso.
Pés de alface!
— O que é tão engraçado? — perguntou.
— Nada. — respondi ofegante, por culpa do riso incontrolável. Lágrimas surgiram no canto dos meus olhos. — É só que... O pé de alface... — mais riso histérico.
— Desculpe, só que é tão...
— Se preferir, pode usar os sabugos. — disse Ian, o rosto sério.
Parei de rir imediatamente.
— Alface tá bom. — tentei me recompor. — Alface tá muito bom. Obrigada, Ian.
— Você precisa usar a casinha ou apenas queria saber sua localização? — ele perguntou, constrangido.
Pensei nisso por um segundo. Em algum momento eu teria que entrar ali, mas iria adiar o quanto pudesse! Disso eu tinha certeza.
— Só queria saber onde fica, podemos voltar. Era só pra saber se tinha um banheiro.
Não me senti melhor sabendo da existência da casinha. E eu que pensei que não poderia sobreviver sem computador! Eu tinha a incômoda sensação de que banheiro seria apenas uma das muitas coisas que eu iria sentir falta.
Começamos a voltar para o casarão pelo caminho contrário ao que viemos. Olhei para o horizonte, vi que já começava anoitecer. Só então percebi que o lugar era bonito. Realmente bonito!
O gramado se estendia até o final da pequena colina onde estava à casa imensa com suas dezenas de janelas. Contudo, ela combinava perfeitamente com a paisagem: um jardim bem cuidado enfeitava a entrada, o colorido das flores enchia de vida a casa pálida cor de creme. A luz rosada do entardecer deixou o quadro ainda mais belo.
— Será que me permite fazer uma pergunta? — Ian inquiriu casualmente.
— Claro.
— Seus sapatos são muito interessantes. — comentou, observando os meus pés. Fiquei esperando a pergunta, mas ele não continuou.
— E? — tentei incentivá-lo.
— Eu nunca vi nada como eles. Não parecem sapatos femininos, tampouco masculinos. Na verdade, não se parecem com nada que eu já tenha visto. — eu tinha certeza disso! — Só estava pensando que tipos de sapatos seriam.
— Você está certo. Não são femininos, nem masculinos. — Ian era esperto! Fiquei surpresa com seu raciocínio rápido. — São unissex, servem para os dois gêneros. Chamam-se tênis. São usados para a prática de esportes, mas a maioria das pessoas os incluiu no guardaroupa por serem tão confortáveis e duráveis. Acho que não existe um jovem que não tenha um par de tênis em casa.
— Bem... — ele disse, com um meio sorriso no rosto. Meu estômago se contorceu levemente. — Existe sim. Eu não tenho nenhum.
Eu ri também.
— Você ficaria de queixo caído se visse as coisas que existem onde eu moro. — se ele achava um simples par de tênis impressionante, o que não pensaria sobre a inovação das inovações chamada papel higiênico!
— Acho que posso acreditar nisso. Nunca, em meus vinte e um anos, conheci alguém tão diferente quanto a senhorita.
— Você também é muito estranho, sabia? — ainda mais pra quem só tinha vinte e um.
Ian parecia mais velho. Não apenas na aparência, mas pelo modo de falar também. Talvez parecesse mais velho por causa da altura. Ian era muito grande. Ainda mais alto que o Rafa, só que menos bombado e, estranhamente, não era desengonçado. Eu sabia, por experiência, que pessoas grandes sempre tinham problemas de coordenação motora. E, apesar de ser uns bons vinte centímetros mais alto que eu, Ian não parecia ser tão atrapalhado. Ao contrário, cada movimento seu era tão elegante que me flagrei algumas vezes observando a forma como ele caminhava com extrema segurança, os ombros largos sempre eretos, a forma como seus lábios se moviam quando falava...
— Planeja me contar sobre ele, senhorita Sofia? Estou realmente curioso. Deve ficar muito distante daqui, pois nunca ouvi falar de um lugar onde mulheres usam roupas... Pequenas e apertadas ou sobre os tênis. — os olhos, cravados nos meus, me compeliam a falar, E por alguma razão que eu não entendia, eu queria contar a ele. Ian estava sendo tão gentil comigo! Mas o que eu diria?
É que fica meio longe. Duzentos anos longe! Se você, por acaso, encontrar uma máquina do tempo perdida por aí, me avisa que eu te levo até o século XXI. A gente pode tomar um chope e depois cair na night!
Claro que eu podia dizer isso a ele e, com toda certeza Ian não chamaria o médico outra vez e nem pediria a ele para me jogar no manicômio. Claro que ele entenderia!
— Um dia eu te conto. Quando eu souber o que está acontecendo e encontrar a forma de voltar, te explicarei tudo. Prometo! Quem sabe você compreende minhas esquisitices!
— Promete? — o rosto sério, os olhos brilhavam faíscas prateadas.
— Prometo. Palavra de escoteira. — ele franziu o cenho. Mas nem os escoteiros? Valeu, Deus! — resmunguei carrancuda.
Ian me encarou como seu eu fosse uma alienígena.
— Eu prometo. — eu disse exasperada.
Ele sorriu mais uma vez. Pensei com amargura que era uma pena as pessoas de hoje não serem mais assim, não sorrirem com tanta facilidade, como fazia Ian. Se bem que, pelo menos naquele momento, Ian era as pessoas de hoje.