capítulo 5

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Toc-toc!
Observei a porta com o telefone ainda pressionado em minha orelha.
Não podia ser real! Aquilo não podia estar acontecendo! Quem era aquela criatura? O que eu fiz pra merecer isso? Por que eu? Que jornada era essa? E o que eu tinha que encontrar pra ela? O que eu iria fazer agora? Eu estava mesmo em 1830? Mas era loucura! Como era possível que eu tivesse viajado no tempo? Não era possível!
As perguntas giravam em minha cabeça, me deixando tonta.
Toc toc!
— Senhorita? — perguntou uma voz masculina.
Guardei o telefone na bolsa e me virei para a porta. Eu tinha a intenção de ir até ela e abri-la, mas minhas pernas não obedeceram.
— E-Entre — esforcei-me para que minha voz saísse com um pouco mais de volume.
Ian entrou. Tinha nas mãos uma bandeja com alguma coisa fumegante.
— Perdoe-me, senhorita Sofia. — disse, assim que pisou no quarto. — Eu mesmo trouxe seu chá. Pensei que já estivesse assustada o bastante para que outro desconhecido o trouxesse. Sente-se um pouco melhor?
— Chá? — indaguei ainda zonza. — Não tem nada mais forte? Algo com bastante álcool, de preferência? — ou talvez éter ou cianureto. Meu cérebro já parecia estar derretido mesmo!
Suas sobrancelhas escuras se arquearam.
— Forte? Um vinho talvez? Vinho?
Suspirei. Era melhor que chá!
— Vinho tá bom. — Tanto quanto formicida.
— Esse vinho é muito bom. Vai se sentir melhor rapidamente.
Duvido muito!
Ele deixou a bandeja numa mesinha. Pegou uma garrafa toda trabalhada de cristal e serviu o vinho numa taça, aproximou-se lentamente de onde eu estava — ainda grudada no assoalho de madeira como uma árvore — e parou a um passo. Esticou o braço, me oferecendo o vinho.
Fiquei feliz ao notar que meu corpo começava a responder aos comandos de meu cérebro. Peguei a taça, um pouco hesitante, as mãos ainda tremendo, e virei tudo em um só gole.
Ele me observava atentamente. Alguma coisa em seus olhos — negros como uma noite sem lua me deixava inquieta.
— Melhor? — perguntou suavemente.
— Sim — respondi quase num sussurro.
Não era inteiramente mentira. Nada faria com que eu me sentisse bem estando ali, mas o calor do vinho correndo nas veias afugentou o frio e um pouco do tremor.
— Ótimo. — ele sorriu um pouco. — E agora...
Ah! claro. Ele queria saber o que havia acontecido comigo e, com certeza, que eu desse o fora de sua casa o mais rápido possível.
— Eu... estou... perdida. — o que mais eu podia dizer? Escuta só cara, eu acordei hoje de manhã no ano de 2010 e, depois que tropecei numa pedra e meu celular criou uma coisa tipo uma Surpernova, eu vim parar, sabe-se Deus como, no século dezenove. Que doideira! — Eu vim de... outro lugar. Não sei bem como aconteceu, mas quando dei por mim, já estava aqui. E não sei como voltar. — era toda a verdade que dava pra contar a ele.
Ian continuava a observar meu rosto.
— Então a senhorita está aqui sozinha?
Como olhos tão negros podiam brilhar tão intensamente?
— Estou. — sozinha e desesperada, eu quis acrescentar.
— Se me disser como, posso levá-la de volta para sua casa. — sua voz gentil, seu rosto amigável.
— Mas o problema é esse! Nem eu mesma sei como voltar! — apenas sabia que teria que encontrar uma coisa que eu não fazia ideia do que era. — Mas eu vou descobrir. — disse mais para mim mesma que para o rapaz gentil que tinha me ajudado gratuitamente até agora.
Entendo. — disse ele, mas tive a impressão que não entendia nada. Não o culpei. Eu mesma tinha dificuldades para compreender. — Pensei que tivesse dito que vinha da cidade.
— E eu vim da cidade! Mas tenho certeza absoluta que não é a mesma cidade a que você se refere. Eu vim... De um lugar distante. — não gostei de dizer meias verdades a ele.
Que estranho!
— Então não há lugar algum aonde eu possa levá-la? — constatou.
— Para onde eu iria naquele fim de mundo?
— Acho que poderia me indicar uma pensão ou um hotel. Não conheço nada aqui. — dei de ombros, imaginando se as pensões já existiam e se aceitariam um cheque pré-datado para 65.475 dias.
— Pensão? Jovens solteiras e desacompanhadas não se hospedam em pensões.
— ele me censurou. — Além disso, seria um imenso prazer poder hospedá-la em minha casa enquanto descobre como voltar para a sua.
Olhei pra Ian chocada. Chocada e desconfiada. Ele me conhecia há menos de uma hora e me oferecia sua casa como hospedagem! Estranhos não ajudam pessoas que acabaram de conhecer. Não no século vinte e um.
— Eu... Não posso ficar aqui. Você nem me conhece! E eu... — mas pra onde eu iria?
Ian ficou muito sério.
—Eu não a conheço, realmente, mas... Fiz algo que a desagradou, senhorita Sofia? Pelo que pude entender, a senhorita não tem conexões aqui, ninguém a quem recorrer. No entanto, parece relutante em aceitar minha ajuda.
— Não. Não é isso. Agradeço muito por sua ajuda! Você foi ótimo! É só que, de onde eu venho, estranhos não ajudam pessoas que não conhecem sem ganhar nada em troca. — soltei e observei sua reação.
Ele me olhou com alguma coisa parecida com indignação.
— Lugar estranho, esse de onde você vem. No entanto, eu ficarei feliz em ajudá-la. Sem receber nada em troca. — ele enfatizou. — Apenas quero ampará-la.
— E por quê? — é claro que eu estava desconfiada. Quem não estaria? Eu cresci ouvindo “nunca aceite nada de estranhos!” Mas, naquele caso em particular, eu não tinha outra alternativa.
Ele abriu um sorriso.
Uau!
— Eu tenho uma irmã caçula, senhorita Sofia. Não gostaria de vê-la numa situação parecida com a sua. E ficaria imensamente grato se alguém a ajudasse em uma hora de dificuldade.
Sem saber o que fazer — e o que pensar — apenas respondi:
— Então, aceito sua ajuda, pelo menos até eu ter uma ideia de como voltar pra casa.
— Excelente! — um sorriso enorme se espalhou em seu rosto. Meu estômago se agitou. Talvez fosse culpa do vinho.
Ian me deu uma rápida olhada e desviou os olhos, parecendo constrangido outra vez.
— Hã... Pedirei à senhora Madalena que traga algumas roupas. Você parece ser um pouco maior que minha irmã, mas, ainda assim, será melhor que ficar... vestida dessa forma. — seus olhos caíram no chão.
— Eu não estou sem roupa! As pessoas se vestem assim de onde eu venho. Pare de dizer que estou pelada! — era constrangedor ver que minhas roupas (ou a falta delas) o deixavam tão perturbado.
Ian arregalou os olhos quando eu disse pelada e depois corou. Nunca tinha visto um homem corar tantas vezes em toda minha vida. Não até hoje de manhã.
— Compreendo. — Ian disse cauteloso. — Mas veja, aqui não estamos... habituados a esse tipo de traje. Então, seria mais apropriado se a senhorita pudesse... Se pudesse se vestir de forma mais... Tradicional. — ele não me olhou enquanto falava.
— Eu... hã.... — talvez minhas roupas fossem mais estranhas pra ele que as dele eram para mim. Homens usavam ternos em escritórios, em casamentos e festas, não para cavalgar, claro, mas eu já tinha visto homens em trajes formais milhares de vezes. Ele, no entanto, não estava habituado a ver pernas, ao que parecia. Eu vi a mulher de cabelos cinza logo que entrei na casa imensa. Ela vestia um daqueles vestidos volumosos e longos de filmes antigos. Será que foi por isso que ela arfou quando me viu? Pela minha falta de roupas? Pensei que fosse por ter uma estranha sangrando no meio da sala. Humm...
— Então, se fizer a gentileza de vestir as roupas que ela trará, poderá sair do quarto sem impressionar ninguém. Elisa está ansiosa para conhecê-la e eu poderia mostrar-lhe minha casa. Já que se hospedará aqui, precisará conhecer as dependências, caso precise de alguma coisa.
Seu rosto era tão gentil, tão sincero!
— Está bem. — concordei, impotente. Eu não poderia encontrar a tal jornada trancada naquele quarto. E seria melhor não chamar muita atenção, de toda forma. — Valeu, Ian. Por... se preocupar.
— Valeu? — um pequeno v se formou entre suas sobrancelhas.
— É o mesmo que obrigada, de uma forma mais casual.— e ri sem graça.
Ele sorriu, depois fez uma reverência — exatamente como nos filmes! — e deixou o quarto dizendo apenas:
— Com sua licença, senhorita.
Nossa! Ele se inclinou pra mim! Como se eu fosse uma mocinha indefesa. Como se eu realmente fosse uma donzela do século retrasado e ele fosse...
Foco! Comandei a mim mesma.
Eu tinha um grande problema. Precisava encontrar muitas respostas. Precisava pensar no que ela havia me dito, palavra por palavra, e tentar encontrar qualquer coisa útil. Mas, fosse o que fosse, eu tinha certeza que não estaria naquele quarto. Eu tinha que encontrar uma pista pra poder voltar pra casa. Por mais gentil — e estranhamente familiar — que o rapaz fosse, eu não tinha intenção de me demorar ali.
Toc-toc!
— Senhorita? — chamou uma voz feminina.
Dessa vez, talvez por causa do calor do vinho, consegui me mover até a porta. A mulher baixinha e rechonchuda, com o mais vivo tom de escarlate no rosto, me olhou de soslaio.
Soslaio?
Eu já estava entrando na brincadeira! Daqui a pouco estaria chamando as pessoas por seus sobrenomes e corando, o que todo mundo ali parecia fazer.
— Senhorita, o patrão pediu para que eu trouxesse estas roupas.
Fiquei olhando a pilha que ela tinha nas mãos. Quantas roupas ela pretendia vestir com tudo aquilo? Tinha tecido ali para armar uma barraca de acampamento.
— Valeu, dona. Mas eu só vou precisar de uma roupa. No vou ficar aqui muito tempo.
— Sim, senhorita, por isso trouxe este aqui. — ela apontou com a cabeça para um tecido azul.
— Ah! Obrigada. — Peguei o vestido, sorri e comecei a fechar a porta, mas a mulher não se moveu. — Algum problema? — perguntei. Não queria ser rude e bater a porta na cara dela.
— Bem... Senhorita... E quanto ao resto? — ela parecia estranhamente nervosa, seu rosto assumiu um vermelho ainda mais intenso.
— Resto? — perguntei sem compreender.
— Do seu traje! — ela esticou os braços, me oferecendo pilha.
— Hein? Que traje? Eu já peguei o vestido!
Ela remexeu na pilha em suas mãos ruborizando violentamente e, sem me olhar nos olhos, disse:
— Os trajes íntimos. A anágua, o espartilho, as meias, a crinoline e o sapato, Senhorita.
A mulher não esperou por uma resposta minha. Colocou tudo em meus braços entorpecidos. Eu peguei automaticamente. Depois, praticamente correu pelo longo corredor. Fiquei olhando até ela desaparecer. Minhas reações ainda estavam um pouco afetadas pelo choque de estar, de fato, no século dezenove. Fechei a porta.
Joguei a pilha pesada de roupas sobre a cama. Tentei reconhecer algumas peças.
Vestido: OK.
Meias: OK.
Um treco de metal que parecia uma gaiola: Nada OK.
Espartilhos: já tinha ouvido falar deles.
Uma saia branca de tecido duro e pesado: talvez fosse a tal anágua.
Uma peça branca parecida com aqueles shortinhos que se usa embaixo do vestido de quadrilha: humm... Supus que fosse um tipo de lingerie, já que tinha uma abertura entre as pernas e um laço de fita de cetim unindo as duas partes. Olhei para ela e ri. As calçolas da vovó pareceriam escandalosas perto disso!
Tirei minha blusa e minha saia e peguei o vestido. Se o problema fosse pernas de fora, ele daria conta do recado. Eu não usaria aqueles Outros instrumentos de tortura. Pra dizer a verdade, fiquei um pouco intrigada com aquela gaiola. Era pra ser usado embaixo do vestido? De verdade?
O vestido azul claro, de mangas curtas e decote reto, ficou um pouco largo na cintura e curto no comprimento, mas minhas pernas não apareciam mais, apenas parte dos tornozelos e meus pés. Mantive os tênis. Os sapatos eram pequenos demais para meus pés, mas, principalmente, pareciam ser desconfortáveis.
Meu Deus, como aquele vestido era quente! O tecido pesado me fazia suar em todos os lugares. O dia estava exatamente como pela manhã. Agradável e quente. Agradável se você estivesse usando roupas leves, é claro. Com amargura, me lembrei de que gostava daquele tipo de vestido em meus livros. Eu gostava por que nunca tinha usado um!
Coloquei minhas roupas na bolsa e amontoei a pilha que sobrara sobre a cômoda. Alguém iria levá-los dali.
Vestida — e me sentindo muito ridícula —, saí do quarto procurando refazer o caminho por onde entrei. Passei por um longo corredor cheio de quadros bonitos — paisagens em sua maioria —, tentando encontrar a sala. Notei que haviam muitas portas no corredor. Comecei a ouvir vozes (não de fantasmas, era só o que me faltava!) e segui o som. Acabei encontrando a sala gigantesca. Ian estava ali, além de mais as duas garotas. Parei assim que os vi, sem saber exatamente o que deveria fazer. Para minha sorte, Ian veio ao meu encontro, sorriu um pouco enquanto examinava o vestido e sacudiu levemente a cabeça.
— Parece estar muito melhor agora, senhorita Sofia. — seu sorriso descontraído me deixou ainda mais envergonhada. Eu estava realmente muito ridícula!
— É. Eu tô melhor. Obrigada, Ian. — respondi, com as bochechas queimando levemente.
Ele tossiu, ao mesmo tempo em que as duas garotas se entreolharam e depois se voltaram para Ian com cara de assombro. O que foi que eu disse?
Ian apenas se limitou a sorrir para as duas.
— Senhorita Sofia, permita-me apresentá-la a minha irmã, Elisa — a garota de cabelo preto inclinou levemente a cabeça, — E nossa amiga Teodora Moura. — a mais baixa e ruiva também inclinou a cabeça, fazendo uma reverência.
— E aí, tudo bem? — perguntei, me aproximando um pouco. Ninguém respondeu. Fui ficando cada vez mais constrangida.
— Obrigada pelo vestido. — eu disse a Ian, num sussurro. Ele sorriu delicadamente deixando seu rosto ainda mais lindo.
— Vejo que lhe caiu muito bem. — seus olhos grudados nos meus pés.
— Ficou um pouco curto, mas posso pedir à Senhora Madalena para fazer a bainha e deixá-lo mais longo. — disse-me Elisa. — Não sou tão alta! — ela deu um sorriso, como quem se desculpa. Quando sorriu, duas covinhas apareceram em suas bochechas.
— Não precisa se incomodar. Não pretendo ficar muito tempo. Na verdade, preciso voltar pra casa imediatamente. Mas valeu pela preocupação.
Toda vez que eu abria a boca, parecia ter o poder de arregalar os olhos de quem estivesse ouvindo, assim como Elisa fez agora. Eu não tinha dito nem uma asneira.
Ou tinha?
— Conseguiu se lembrar de como voltar para casa? —a ruiva perguntou. — Pensei que estivesse sofrendo de um lapso de memória. Não foi isso que nos disse há pouco, Senhor Clarke?
Clarke?
— Sim, senhorita Teodora. Foi como eu disse, a pancada na cabeça deixou a senhorita Sofia ligeiramente confusa. — ele respondeu, erguendo as sobrancelhas.
Ah! Ian Clarke. A garota estava chamando aquele rapaz, que parecia ser mais jovem que
eu, de Senhor Clarke!
Onde foi que eu vim parar!
— Eu não estou confusa. — não com relação ao lugar de onde eu vim. — Apenas não sei como voltar. É meio complicado. Mas eu juro que descubro logo! Nem que eu tenha que me enfiar em cada buraco deste lugar.
— Não precisa ter tanta pressa, senhorita Sofia. — Ian se apressou em dizer. Seus olhos me pareceram muito sinceros. — Será um prazer recebê-la aqui pelo tempo que for necessário.
— Nossa, valeu! Nem sei como agradecer tanta hospitalidade, mas eu tenho mesmo que voltar logo. Tenho muita coisa me esperando.
— É claro. — respondeu quase sorrindo. — Posso lhe mostrar a casa?
Ian era bacana. Quem imaginaria que um homem pudesse ser tão gentil com uma desconhecida? Bem, ser gentil com uma desconhecida sem ter a intenção de levá-la pra cama. Eu não conhecia mais nenhum.
— Pode ser Ian. — sorri timidamente.
As garotas se entreolharam mais uma vez. Eu corei sem saber o motivo, mas aparentemente eu havia ofendido alguém de alguma forma.
— Por que toda vez que eu digo alguma coisa sua irmã e Teodora parecem tão espantadas? — indaguei, depois que saímos da sala imensa e entramos em outro corredor largo com mais uma dezena de portas. Tinha certeza que jamais encontraria cômodo algum naquele labirinto. — Falei alguma besteira?
— Como já disse antes, seu modo de falar é... peculiar. — ele lutava para não sorrir. — Algumas de suas palavras são um tanto diferentes, mas creio que elas se espantaram pelo fato de chamar-me por meu primeiro nome.
Olhei pra ele. Ele não estava falando sério! Não podia estar falando sério!
— Eu não posso te chamar de Ian? É seu nome, não é?
— Sim, é meu nome. — ele deu um meio sorriso. — Mas jovens solteiras normalmente devem saudar os cavalheiros por seus sobrenomes. Nesta parte do país, ao menos, é assim. — ele estava falando sério! — Se dirigir a alguém por seu primeiro nome denota certa... intimidade.
— Intimidade tipo conhecer há muito tempo ou tipo sexo? — eu tinha que aprender depressa como não chamar tanta atenção.
Ele parou repentinamente. Olhei seu rosto e, por um momento, pensei que Ian fosse sufocar. Por sua expressão, suspeitei que sexo não fosse um dos tópicos mais discutido por ali.
Opa!
— Senhorita Sofia, por favor, peço que compreenda que, nesta parte do país, as... hã... certas coisas continuam como sempre foram. Conservadoras! Esse lugar de onde a senhorita vem parece ter sido... modernizado rápido demais. Mas gostaria que não falasse de certos assuntos em minha casa.
— Ah! Desculpa. Eu não sabia que não devia falar. Quer dizer, eu devia ter imaginado. Já li tantos livros sobre esta épo... Err... e nunca ninguém mencionou nada sobre se... Coisas assim. Já entendi. Não vou esquecer. Prometo, Ian.
Ele suspirou.
— Ai, caramba! Prometo, Senhor Clarke. É que é tão estranho te chamar de senhor! Você deve ter quase da minha idade. — talvez tivesse vinte e três ou vinte e quatro. Eu estava habituada a chamar homens bem mais velhos de senhor, mas um cara bonito e tão jovem e que não era meu superior...
— Na verdade, eu não me importo com isso. Pode me chamar de Ian, se quiser.
— um sorriso apareceu em seus lábios. Ele baixou um pouco a voz, num tom conspiratório. — Mas se mais alguém ouvir, terá uma reação parecida com a de Teodora.
— Eu não me importo também. Mas vou tentar me lembrar da próxima vez. Não quero te deixar numa saia justa. Você tem sido muito bacana comigo. — era o mínimo que eu podia fazer para retribuir sua ajuda espontânea.
— Saia justa? — perguntou confuso.
Ô, meu Pai! O dia seria longo!
— É tipo uma situação embaraçosa. Constrangedora. — expliquei.
— Oh! Não me importo com isso também. Mas você, senhorita, tem uma reputação a zelar.
— Olha Ian, estou com tantos problemas que não dou mínima pra isso. Além disso, se tudo der certo, me mando logo daqui, então não importa. — suas sobrancelhas arquearam novamente. Apressei-me para explicar. — Caio fora. Dou no pé. Pico a mula. — a incompreensão ainda tingia seu rosto. — Vou embora, sacou, digo, entendeu?
A incompreensão deu lugar a outra coisa. Pareceu—me ser... desapontamento?
— Você está sendo super bacana comigo, Ian. — tentei correr com as palavras. Não queria que ele me achasse uma ingrata. — Mas é que eu realmente preciso descobrir uma forma de voltar. Minha vida está lá me esperando. — meu emprego, minha casa e Nina, que devia estar me procurando como uma alucinada por eu não ter aparecido ainda em seu apartamento para saber como o Rafa havia reagido diante de seu pedido.
— Posso imaginar, senhorita Sofia. — ele me encarou por um longo minuto, depois recomeçou a andar. — Posso imaginar!
Eu o segui.
— Ian, será que posso te pedir outro favor?
— Certamente, senhorita. — seu rosto ficou sério. Ele me observou com curiosidade.
— Dá pra me chamar só de Sofia? Sem o senhorita? Apenas Sofia? Já está me dando nos nervos!
Ele riu, um pouco surpreso com meu pedido.
— Posso tentar. — ele disse. — Não sei se consigo ser tão espontâneo quanto você.
— Claro que consegue! Ele riu.
— Vou tentar. Agora venha, vou lhe mostrar minha casa. — disse, apontando para uma das portas.
Pensei que precisaria desenhar um mapa se quisesse realmente encontrar os cômodos outra vez. Eram tantas as salas — de leitura, de pintura, de estudos, escritório — e tantos os quartos — de dormir, de costura, de vestir — e apenas quatro deles estavam, de fato, sendo ocupados.
Ian me guiou pelo labirinto até chegarmos à cozinha.
— Senhora Madalena, creio que já conheceu a senhorita Sofia. — ele disse, formalmente.
Meus olhos se estreitaram ao constatar que ele ainda não colocara em prática a promessa de me chamar apenas por meu nome.
A mulher baixinha secou as mãos no avental amarrado na cintura e se aproximou.
— Como está, senhorita? O vestido lhe caiu muito bem. — ela me examinou de cima a baixo. Seus olhos se detiveram em meus pés. Sua testa se enrugou. — Os sapatos não eram de seu agrado?
Olhei para meus pés, assim como fez Ian. Eu realmente havia me esquecido dos tênis. E tinha certeza de que eles atrairiam olhares curiosos, ainda que não fossem vermelhos.
— Na verdade, ficaram pequenos. — eu disse, me desculpando, como se fosse culpa minha ter pés maiores que o sapato; não pés grandes demais, mas decididamente não eram pequenos. — E eu gosto destes aqui. São mais confortáveis.
Ian sorriu. Além de lhe cair bem, o sorriso vinha facilmente aos seus lábios. Gostei disso. Gostava de pessoas bem humoradas que sorriam mais do que faziam caretas.
— Este é o Senhor Gomes, meu mordomo — disse ele, ainda sorrindo.
— Encantado em conhecê-la, senhorita Sofia. — o homem de meia idade se inclinou de forma exagerada.
Precisava daquilo tudo?
— Errr... O prazer é meu, Seu Gomes.
Ian sacudiu a cabeça, rindo baixinho, e continuou me guiando de volta por um dos corredores — que eu não fazia ideia de onde iria dar. Depois de um tempo, porém reconheci um dos quadros na parede do corredor. Já tinha visto aquele quadro mais cedo. Estávamos voltando para a sala onde Teodora e Elisa deveriam estar.
— Acabou? Você me mostrou tudo? — perguntei aflita.
— Sim. Mostrei toda casa. Há algo errado, senhorita Sofia?
É claro que havia! Uma casa com uma dezena de salas, a cozinha gigantesca uma dúzia ou mais de quartos e só isso. Nada mais.
Oh, Deus, por favor! Permita que eles já existam, por favor!
— Senhorita? — Ian me lançou um olhar preocupado. — Está se sentindo bem?
— Cadê os banheiros? — perguntei em pânico.
— Banheiros?
Ah, Não!
Não! Não! Não!
— Sim. Banheiros. Onde se toma banho... Por favor, me diga que você tem pelo menos um nesta casa! Por favor!
Ian ficou confuso. Muito confuso. Então eu soube a resposta.
Nada de banheiros!
Eu não queria pensar nas opções. Recusei-me a pensar nisso.
— Imagino que tenha notado a banheira em seu quarto. — ele disse, inclinando a cabeça levemente para o lado, ainda desnorteado.
— Sim. Acho que vi. — não tinha visto, realmente, mas se ele disse que havia uma... Não dava mais pra confiar no que apenas eu via.
Banheira era bom. Acalmava. Relaxava. Mas não resolvia todos os meus problemas. Eu ainda olhava pra ele com um horror crescente. Totalmente desesperada, na verdade.
— A banheira, beleza. Mas e quanto ao resto?
— O resto? — repetiu.
Ele estava tentando me irritar? Por que, nervosa como eu estava, nem precisava se dar ao trabalho.
— É, Ian, o resto? E pare de repetir tudo o que eu digo. Está me deixando nervosa.
Não entre em pânico! Não entre em pânico!
— Perdoe-me. A que resto, exatamente, a senhorita se refere? — Ian parecia verdadeiramente confuso.
Respirei fundo, tentando me acalmar e pensando que, se ele não sabia o que era um banheiro, então não saberia qual era sua finalidade também.
Isso não pode estar acontecendo!
Fechei meus olhos bem apertados, tentando acordar mais uma vez. Quando voltei a abrilos, Ian ainda estava ali, me observando curiosamente. Respirei fundo outra vez.
— O resto! — as palavras saíram sem controle. — O resto. As necessidades fisiológicas, o xi...
— Ah! Entendo, ele me interrompeu assim que compreendeu sobre o que eu perguntava. — Você deve estar falando da casinha!
Não gostei da forma como ele disse “casinha”.
Não gostei nada!
— Fica do lado de fora. Vou lhe mostrar. 

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