Capítulo 2: Unidos pela carne

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O som do solado de seu sapato tocando o cimento da calçada ecoava pelo vazio das ruas. A passos curtos e aparentemente cronometrados ele se aproximava cada vez mais de mim. Eu o olhava ansioso, sem saber quem era aquele homem vestindo uma calça jeans e uma jaqueta de couro que parecia me conhecer.

- Posso sentir o teu cheiro de longe! É pútrido. É azedo. É inigualável.

Aquele homem parou a mais ou menos uns dois metros de distância de mim. Se agachou para que seus olhos ficassem na altura dos meus. Ele se apresentou com um sorriso amarelo de cinismo e vermelho de sangue. Suas gengivas estavam coradas, com a mesma cor que meu rosto inteiro.

- É incrível não é? Dá vontade de nunca tirar esse gosto da boca, concorda? - Disse com um tom acolhedor - Eu posso ver o movimento da sua língua pelas suas bochechas.

Mantive o olho que me restara, fixo em sua expressão bizarra. Ele parecia estar com fome também.

- Ei Dood! Que houve? Que cara é essa?

Dood. Nesse momento descobri meu nome, ou no caso como havia dito, a forma que me chamavam. Aquele homem parecia me conhecer há algum tempo. Ele falava com confiança.

- Quem diria que um dia eu ia te encontrar nessa situação?- Ele debochou - Comendo a carne de uma velha no meio da rua. Quem diria?

- Do que você está falando? - Era a chance de saber quem eu era, de onde vim, porque havia sido amaldiçoado com algo tão doloroso.

- Cara... Eles lavaram a sua mente mesmo, não é?

As dúvidas apenas aumentavam em minha mente. Não sabia se podia confiar naquele homem, que possuía um olhar assassino. Era óbvio que ele fazia parte do meu passado. Apenas não sabia se era da parte boa, ou da parte ruim. Comecei a me questionar se meu passado teve uma parte boa. Ninguém sofreria como estava sofrendo à toa. Talvez a opção mais inteligente fosse deixar como estava. Seria até irônico, batalhar para descobrir meu passado e em seguida dar qualquer coisa para esquecê-lo.

- Vamos, Dood. - O homem disse enquanto retirava sua jaqueta de couro escuro. Ele a arremessou para mim. - E tire esse casaco. Seu cheiro de carne podre eu aceito, mas esse maldito cheiro de naftalina me lembra gente velha. E eu odeio gente velha.

Era engraçado ouvir aquilo, pois ele não parecia tão jovem assim. Seu rosto aparentava cerca de quarenta anos, mas suas mãos enrugadas não enganavam; ele tinha bem mais que isso. Podia ver um sorriso debochado no canto de sua boca enquanto eu retirava o casaco da velha senhora que eu havia acabado de devorar. Agarrei sua jaqueta rapidamente e a vesti.

- Vamos? - Ele me chamou, enquanto virava de costas, confiante de que eu o seguiria. Não tinha opção, então o fiz. Prosseguimos lentamente pela calçada. Ele não olhou para trás um instante sequer. Só voltamos a ter contato quando nos aproximamos de um Lincoln preto. Era um carro novo, sua carroceria brilhava, mesmo refletindo somente as luzes dos postes - que nem eram tão forte assim.

- Ele é lindo não é? Essa é a única parte que eu não me incomodo nem um pouco em repetir quantas vezes forem preciso. – O homem disse orgulhoso, enquanto passava a mão sobre o capô do carro. - Ele se chama Mamba Negra. Lincoln Continental, ano 1961. Interior todo de couro original. É bonito só de ouvir, mas ver é bem melhor. – Ele abriu a porta do carona e gesticulou com a mão para que eu entrasse. Já havia o seguido até ali...

O carro havia sido reformado a pouco tempo. Podia sentir o cheiro do plástico novo.

- Oh droga, eu já havia me esquecido. Ser seu amigo custa caro. - Ele disse rindo. - A cada viagem tenho que trocar o assento. Você costuma deixar um pedaço seu onde senta.

- Aonde estamos indo?

- É natal Dood. Vamos cear. – Aquele homem estranho respondeu enquanto arrancava com o carro. O espírito natalino realmente estava pairando sobre a cidade. Cidade qual eu ainda nem sabia qual era. As memórias em minha mente eram zero.

- Onde estamos? - Questionei. 

- Como assim onde estamos? No carro, indo comemorar o Natal.

- Quero dizer, que lugar é esse, que cidade ou... País é esse?

O homem me apontou um olhar desconfiado. Respirou fundo e prosseguiu, se conformando:

- Eu entendo que quer entender o que está acontecendo. E que deve estar completamente confuso, mas você terá suas dúvidas sanadas em breve. Isso vai ser chato. Vai ser um trabalho muito chato. Mas eu farei, não se preocupe.

Ele retirou uma das mãos do volante e a estendeu para mim. Por impulso a segurei e apertamos as mãos.

- Prazer, eu me chamo Rudy e nós nos conhecemos há alguns bons anos.

Finalmente alguma coisa começava a se esclarecer. Ele se dizia meu amigo. Eu não me lembrava de um rosto sequer. Se era a única fonte de informação que eu tinha, teria que me agarrar a ela.

- Porque estou assim? O que é isso que está acontecendo comigo?

- Dood, você é um zumbi.

Não me recordava dessa palavra. Mas já supus não ser algo bom... Ele continuou:

- Mas você não é só mais um zumbi. Então anime-se, você é um dos melhores.

Um dos melhores seres podres, humilhados, vagando em meio a escuridão. Assassinando, comendo carne humana. Rastejando sujo de sangue e sendo caçado como um animal. Realmente... É uma honra.

- E porque eu estou assim? Sei que estou vivo, mas sinto estar morto. Meu corpo dói, fede. Sinto que minha carne está mole, e que vai cair a qualquer momento. Porque você não está assim?

- Porque eu não estou assim? Porque eu não sou você. Nem muito menos o que você é.

- Você também não é um zumbi? Mas você também não come carne humana?

- Como. Mas não tenho essa mesma necessidade que você. Eu como porque é bom. Você sabe que é. O sabor é delicioso. E quanto mais eu como, mais eu fico por aqui. É como um ciclo.

Ele estacionou, desceu do carro e já do lado de fora me chamou pela janela.

- É hora, vamos comer?

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