Capítulo 01

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Moscou – Rússia
Inverno – Dias atuais

Às sextas eram dias especiais, sempre o fechamento de um ciclo ou como normalmente chamam, termino da semana. Gostava ainda mais por não precisar ir a faculdade, depois disso, digamos que as minhas sextas e os outros dois dias seguintes eram como a minha recompensa de descanso por um bom comportamento durante a semana inteira, eu não fazia questão de cultivar amizades, não cometeria mais o erro de confiar demais em alguém, bastava a traição de quem deveria me acalentar do mundo, mas evitar completamente a presença das pessoas era um trabalho ardiloso, eu fugia a maior parte do tempo, porém Raquel foi alguém insistente e alegre demais do meu curso que aos poucos conseguiu se inserir de maneira superficial na minha rotina, era algo distante na maioria das vezes por insistência minha só que o suficiente pro momento que vivia.

Eu não era Russa, de longe não era mesmo, mas me mudar pra Moscou foi quase como um grito e última tentativa de suspiro em busca da liberdade que nunca consegui sentir de maneira completa, largar a minha vida no Brasil não foi difícil, mas desistir do que me sufocava, sim. Eu tinha duas opções antes de decidir vir, insistir no que eu desejava descobrir antes do apagão ou esquecer tudo isso para viver o que algumas páginas velhas de um mísero diário revelavam, na época pareceu mais sensato seguir em frente, hoje eu já não tenho tanta certeza. As vezes sinto que algo grita, implora pra que alguma coisa saia dessa escuridão que se tornou as minhas lembranças, mas que o meu corpo afoga com toda a força que tem, talvez como um sinal de preservação, cuidado, agora com o que? Minha ‘’querida mãe’’ fez questão de frisar que tudo o que vivi não passou de cenas irrelevantes e desnecessárias, páginas que deveriam ser esquecidas e eu só cansei, cansei de lutar com alguém que deveria me confortar. Me libertar das garras de Virginia foi a melhor decisão que eu poderia ter tomado.

Cursava Medicina na Lomonosov Moscow State University, era uma das mais antigas e renomadas universidades de Moscou na Rússia. Depois de tudo o que me aconteceu com o acidente e a perda de memória eu me via quase que na obrigação de encontrar respostas não somente pra mim, mas para outras pessoas que talvez estivessem enfrentando uma situação pior ou semelhante a minha. Vendo todo o cuidado que recebi ao longo do meu tratamento acabei não conseguindo deixar de lado o amor que a profissão tomou no meu peito.

O clima na cidade é geralmente agradável quando não se está entre 15 de outubro a 14 de abril, quando tudo parece querer nos congelar. Hoje é 29 de novembro e normalmente esse período sempre dá uma nublada, trazendo um dia que devia seguir o curso dos demais, nublado com fortes ventos, mas por incrível que pareça a neve deu uma trégua leve, se consegue ver que tem um mundo fora do calor da minha cama, mas não sei se isso conforta, a tempestade diminuiu seu ritmo e se mostrou tão calada que chega a arrepiar. As vezes essa cidade te silenciava demais, era perigoso, algumas pessoas não lidavam tão bem com essa escuridão, a falta de sol, ficar só sem tanta luz não é pra qualquer um, contudo via isso quase como um completo conforto, eu podia ser quem eu era sem precisar sorrir, agradecer ou ser gentil quando eu só desejava ficar calada. Meus maiores momentos de felicidade eram quando eu atendia os pacientes através do estágio no hospital universitário da faculdade, eu sentia esperança, felicidade utilidade e liberdade toda vez que conseguia solucionar cada problema envolvendo meus pacientes.

Fazia uma semana que tinha voltado das minhas férias da Noruega, tinha sido incrível, tenho de admitir que os conselhos insistentes de Raquel foram certeiros, fazia tanto tempo que eu não me permitia viver sem medo, receio, economizei tudo o que podia e fui, a experiencia conseguiu me trazer um pouco mais de esperança, a apatia que tem sido a minha companheira fiel durante uns b nos anos conseguiu amenizar sua presença. Eu me sentia mais leve, aquele peso constante diminuiu um pouco, a sensação de insegurança decaindo. Sabe quando se consegue respirar sem receio do amanhã? A viagem me fez experimentar essa sensação que não sentia a um longo tempo.

SilêncioOnde histórias criam vida. Descubra agora