[...] O garoto está desaparecido há cerca de quatro dias. Saiu para fazer uma entrega na noite de terça-feira e não voltou mais. Seus pais estão desesperados. Qualquer pessoa com alguma informação por favor entrar em contato pelo [...]
Son Hyunwoo trocou a estação de rádio outra vez, deixou onde tocava uma música qualquer. A mente sempre alerta do policial de 33 anos agora estava dispersa, perdida na tediosa paisagem rural da estrada que o leva até a cidade de Mujigun, um daqueles lugarejos onde o tempo passa devagar e os moradores formam uma comunidade fechada em que forasteiros são bem-vindos apenas para gastar seu dinheiro em restaurantes de comida tradicional e bares gourmetizados. Não há nada de interessante no lugar além de um grande e famoso lago usado como ponto de pesca recreativa durante o verão. A única razão para ir até lá no início da primavera, alguns meses distante da alta temporada, é seu afastamento disciplinar.
Há dez anos, desde o agora longínquo 2010, trabalhava no departamento de crimes comuns em uma delegacia de um bairro periférico da capital sul coreana. Lidava com todo tipo de ocorrência, desde casos mais leves como brigas entre vizinhos até lidar com gangues locais. Hyunwoo é um dos funcionários mais competentes, sempre faz horas extras e nunca tira férias. Soluciona a maioria dos problemas que apareçam, mas ultimamente seu pavio está mais curto do que o habitual.
Fazia alguns meses que Hyunwoo se sentia estranho, sobrecarregado como uma bomba relógio. Já havia arrumado briga com vários dos delinquentes do setor e há três dias chegou ao ápice: com um soco quebrou o nariz do dono de uma boate que agrediu a esposa ao ponto de a mulher precisar ser internada. Em sua opinião, tratava-se de um desgraçado, um filho da puta, estava envolvido em prostituição e aliciamento de menores. O infeliz pagou fiança e foi liberado, enquanto Son recebeu punição disciplinar: suspensão não remunerada por cinco dias, além de aconselhamento para procurar ajuda psicológica. Precisava controlar o estresse.
Desligou o rádio e suspirou. Precisava desprender-se do mundo e relaxar. Nesse sentido, pescar em Mujigun parecia ser o ideal. Provaria para todo o departamento não ser um estressado de merda que não podia lidar com o próprio trabalho, nem precisar da porcaria de terapia nenhuma. Era a droga de um policial, não um fracote qualquer, protegia os outros, aplicava a justiça, era o que fazia, e conhecia muito bem o peso de suas responsabilidades. O celular tocou e foi um alívio, muito melhor falar com alguém do que ficar preso em sua teia de pensamentos. Era Hoseok, seu parceiro e amigo de longa data. Atendeu no viva-voz sem perder a atenção da estrada.
── Fala bombado!
E aí Hyunwoo já tá sentindo a paz de espírito entrando em ti?‒ Ele riu, a risada de Hoseok era alta, espalhafatosa e contagiante, às vezes irritante em sua opinião.
── Vai tomar teu suplemento e não enche, seu mala! Por que não me disse que a porcaria da cidade ficava do outro lado do continente?
Foi Hoseok quem falou sobre Mujigun, contou sobre o lago e emprestou a chave de sua casa de campo onde costumava passar os feriados. Fez ainda uma lista com os melhores lugares para comer e beber. Queria realmente acreditar que aquilo ajudaria seu parceiro, pois sabia melhor do que ninguém como ele precisava relaxar.
── Deixa de ser exagerado, pela hora que saiu daqui já deve estar quase chegando.
Olhando para o GPS viu que de fato já estava dentro do território da cidade e em alguns minutos chegaria ao centro urbano. Hoseok tagarelava animado sobre o primeiro caso que apareceu naquela manhã de sexta-feira onde uma garçonete era acusada de agressão física por seu marido gigolô que havia roubado todo seu dinheiro de comissão da noite. A bagunça de sempre, corriqueira até, o tipo de caso irrelevante que divertia a todos, mas irritava Hyunwoo. Até conseguia ver a cena em sua frente e deixou um suspiro tedioso escapar. Foi quando o viu. Ergueu as sobrancelhas e arregalou os olhos, o coração saltou, a adrenalina então correu por suas veias e ele agiu rápido pisando no freio e ao mesmo tempo tentando desviar do idiota.
O adolescente de cabeleira negra na scooter laranja parecia um entregador. Apareceu do nada, sem capacete, como um louco, atravessava lentamente a pista alguns metros a sua frente. Foi por pouco. Por sorte não havia nenhum carro na pista. Com um barulho alto emitido pelo freio da caminhonete parou lado a lado com a scooter. Hyunwoo sentiu o sangue ferver de raiva, baixou o vidro para xingar o garoto.
──Tá ficando doido, seu maluco filho da...
Não conseguiu terminar. Abriu bem os olhos para ter certeza do que via. O garoto o encarava estático, sem expressão, branco como um boneco de cera, com sua pele pálida e os cabelos pretos ligeiramente compridos e ondulados, sua boca carnuda formava um bico. A cabeça tombou para o lado em um movimento lento e desajeitado como se ela pesasse demais para aquele pescoço fino e comprido, quase inumano. Dos olhos, onde escleróticas, pupilas e íris formavam um conjunto indistinto de massa escura e gelatinosa, vertiam grossas e espessas lágrimas de sangue.
Hyunwoo sentiu frio, queria sair dali e não conseguia. Seu corpo se recusava a agir, estava paralisado como um idiota, involuntariamente seus ombros se encolhiam e as mão apertavam forte o volante ao ponto de os dedos ficarem brancos. Isso não é real, não pode ser real, não é verdade, é uma ilusão, repetia mentalmente.
── Hyunwoo! Hyunwoo! Caralho fala alguma coisa, o que aconteceu?
A voz preocupada de Hoseook o despertou. Desviou o olhar para o celular e tentou falar alguma coisa, mas não saiu som algum. Quando voltou seu olhar outra vez para fora em direção ao garoto, se questionou pela primeira vez em toda a sua vida se não precisava realmente de ajuda psicológica, talvez até psiquiátrica: a scooter e o garoto e as lágrimas de sangue haviam desaparecido, não havia rastros de que estiveram ali.
Passou as mãos nos cabelos e respirou fundo sentindo seu corpo relaxando devagar, talvez fosse apenas uma ilusão, uma fodida de uma ilusão. Devia mesmo estar cansado e precisando relaxar, soltou então uma risada esquisita e esganiçada, desesperada.
── Hyunwoo caramba! O que tá acontecendo? Tá maluco? Que barulho foi esse cara?
Respirou fundo e pigarreou testando a garganta antes de responder.
── Nada não, foi um bicho que passou na estrada e... bem, quase bato nele. ‒ Mentiu, precisava mentir. ── Vou desligar e tentar chegar logo nesse buraco pra onde tu tá me mandando.
── Tá bom cara, presta atenção na estrada e vê se descansa um pouco. ‒ Hoseok não parecia estar convencido pela mentira do companheiro, ainda assim se despediu normalmente desejando uma boa pescaria.
Hyunwoo seguiu na estrada tentando acalmar o coração.
****
NOTA:
Mujigun é a cidade fictícia onde se passa o dorama "Save Me", aliá, recomendo!
E aí gostaram? Da uma estrelinha estão hehehehe
Será que tem um fantasminha camarada ou encosto do inferno nas costas do Shownu?
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Olhos Sangrentos
HorrorChae Hyungwon desapareceu misteriosamente quando fazia a última entrega da noite para o restaurante dos pais. Quatro dias após o sumiço do jovem, Son Hyunwoo, um policial de Seul estressado e frustrado, chega à insipida cidade de Mujigun em busca de...