Parte I

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Sendo abençoada por um sono profundo em meio ao intervalo entre uma aula e outra (Na verdade ela dormiu durante essa aula anterior também), Sarah apoiava sua cabeça raspada em um dos braços e mal podia sentir uma gotinha de saliva escorrendo pelo canto da boca. O preço que se paga por não respirar pelo nariz enquanto dorme.

Alguém se aproxima e, vendo sua situação deplorável, resolve acordá-la da forma mais apropriada possível.

Encarnada pelo espírito sombrio da quinta série, a pessoa dá uma rasteira no cotovelo de Sarah. O equilíbrio entre seu braço e sua cabeça é posto abaixo, fazendo sua cabeça se chocar contra a mesa. Sarah acordou pelo tapão no braço ou pela pancada na cabeça? Nem Deus sabe.

Demorou alguns segundos para Sarah levantar a cabeça e se recobrar do susto.

- Qual teu problema, cara?! - grita Sarah, furiosa.

- Devia é estar me agradecendo - respondeu Raposa, apelido dado pela própria Sarah à amiga depois de, há alguns anos atrás, conhecê-la ao flagrar muitas de suas invasões noturnas a galinheiros de fazendas mais ricas que eram vizinhas a de sua família para roubar as galinhas. -Quer que ela te veja com essa cara toda babada?

O Ela a quem Raposa se referia era Raíza, colega de classe e por quem Sarah tinha uma paixão inestimável. Mesmo sem nunca ter sequer trocado uma palavra com a garota que não fossem apenas cordialidades do dia a dia ou pedir uma folha de caderno. Mas na cabeça dela fazia sentido.

Raíza sentava na carteira logo atrás de Sarah, logo, teria de passar por ela, inevitavelmente. O que era uma oportunidade irrecusável por parte de Sarah para poder admirar tudo aquilo que sua amada, até então, mostrava de mais deslumbrante. Raíza era alta, pele negra clara, seu cabelo preto era longo e liso, com as pontas coloridas de vermelho-fogo. Cor essa que também pintava sua curta franja. Sempre usava rabo de cavalo, uma característica que sempre fazia Sarah se perguntar: "Como ela não fica com dor de cabeça?"
Seu nariz era um dos mais bonitos que a variabilidade genética pode proporcionar: grande e reto. Com aquela leve quebradinha no topo. Um piercing bridge o abraçava, cujo nome em tradução literal expressa de forma perfeita seu efeito: ponte. Uma ponte entre os dois pares de joias dentro dos buracos oculares daquela garota. Joias essas que tinham incríveis duas cores diferentes.

Do lado direito, um quartzo fumê. Do lado esquerdo, uma jade.

Sarah não sabia por qual das cores se apaixonara primeiro, se fora a imensidão do castanho, ou se fora a luz do verde claro. Talvez os dois ao mesmo tempo.

Os lábios de Raíza eram grandes, numa tonalidade mais próxima do marrom que do rosa. Sarah sentia arrepios só de olhá-los se mexendo quando falava. Se perdia pensando no quanto devem ser macios e úmidos ao serem beijados. Imaginava como era a sensação de tê-los para si.

Raíza passa por Sarah e, percebendo seu olhar diretamente a ela, o devolve.

Sarah quase desmaia quando aqueles olhos atiraram-se a ela e desvia o olhar para frente por reflexo, mas por dentro havia uma ânsia colossal por permanecer fixada neles.

Durante a aula, Sarah pega um pequeno espelho do bolso e o posiciona disfarçadamente ao lado do braço para admirar o reflexo de Raíza atrás de si, como faz todos os dias. Ela não queria jamais correr o risco de aquele rosto tão magnífico ser esvaído por sua memória.

No intervalo, Raíza estava sentada numa calçada de chão de granitina que rondava o prédio principal da escola. Aparentemente ela não estava preocupada se iria sujar suas calças, estava entretida demais mexendo no celular.

Sarah e Raposa estavam ali perto, no gramado entre o pátio e o prédio principal, sendo que logo atrás delas havia uma placa que dizia claramente: "Não pise na grama"

-Ela tá ali. - disse Sarah, tentando disfarçar o olhar direto sobre Raíza. -A oportunidade perfeita, é hoje.

-Tu diz isso todo dia - retrucou Raposa. A amiga já estava cansada da mesma ladainha diária: a elevação nos picos de coragem de Sarah que, quando bem perto de recitar todos os seus sentimentos enrustidos, despenca imediatamente.

Porém Sarah a desafia:
-Ah é? Fica olhando, garota.

E lá foi a bonitona, toda pomposa andando na direção da sua pérola mais preciosa.

Será que seria aquele o dia em que finalmente Sarah teria coragem de trocar uma única palavrinha com Raíza, mesmo que seja só um "me empresta o isqueiro?"

No meio do caminho, Sarah para de repente e recua. Não, não era aquele dia. Ou pelo menos não naquele momento.

Não deu tempo nem de Raíza perceber a presença das duas por perto, fazendo Raposa se perguntar: "O que foi dessa vez?" Como em todos os dias.

-Já voltou, cachorrona? - debochou Raposa, ao ver a amiga retornar suando frio, com cara de quem viu o plano astral inteiro de tão pálida, a única cor que se sobressaía era o vermelho da vergonha em suas bochechas. A coitada puxava o ar para dentro de seu pulmão tal qual um asmático em crise, quase podia ver a pontinha de seu coração escapulindo pela boca ao arfar.

-Ela parece ocupada, não quis atrapalhar. - gaguejou Sarah, mentindo na cara dura, mesmo sabendo que não enganaria a amiga com essa desculpa

-Ocupada? Mexendo no celular? - contestou a amiga, já irritada com aquela situação.

-As pessoas fazem muita coisa pelo celular hoje em dia, sabia?

-Eu tenho uma ideia melhor.

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