Parte III

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Bem ao lado do muro branco de chapisco que dividia a escola da rua estavam Sarah e Raposa pensando em qual seria a próxima tentativa, o plano C, ou D, ou seja lá qual fosse, já foram tantos.

Como num estalo, Sarah se lembra que, a essa hora, horário de almoço, Raíza costumava pular o muro da escola para fumar atrás de uma mercearia que havia ali perto. É permitido? Não, mas era tão fácil que era como se o muro pedisse para ser pulado e a escola implorasse para ser evadida.

-Como sabe disso? - questionou Raposa.

-Por que eu sempre a vejo lá. - respondeu Sarah, com os ombros e mãos levantados, como se também dissesse "É, ué".

Indignada com a resposta, a amiga retruca:

-Sarah, você pula o muro pra fumar toda terça-feira e nunca pensou nisso?

Nas terças-feiras em que Sarah fazia isso, realmente passava pela sua cabeça que poderia aproveitar aquelas oportunidades em que estavam sozinhas atrás da mercearia. Mas sempre faltava uma desculpa para se aproximar.

Oferecer um isqueiro, talvez? Mas Raíza já tinha um.

Elogiar o cabelo dela e perguntar qual xampu usa? Mas Sarah raspa a cabeça, por que perguntaria isso?

Perguntar qual sua banda favorita de blackmetal? Mas Sarah sabia que Raíza gostava de punk.

-Antes tarde do que nunca, agora me dá o pézinho, vai. - implorou Sarah, com um tom de murrinha na voz.

Raposa, que mesmo com má vontade diante da justificativa de merda dada pela amiga, resolveu continuar ajudando-a. Curvou a coluna para estar na mesma altura que Sarah e estendeu as mãos entrelaçadas para que ela pudesse apoiar os pés e subir no muro.

Feito isso, Sarah já estava do lado de fora da escola. Podia ver há poucos metros de distância Raíza caminhando em direção ao famoso point de fumantes.

Ao segui-la, Sarah ficava pensando no que fazer, no que dizer, afinal, nunca havia chegado naquela fase. Até então, a interação com sua amada se limitava a olhares, cumprimentos breves e o reflexo de um espelho.

"E se ela me esnobar?" Pensava Sarah, enquanto enormes gotas de suor escorriam por sua face, chegando a pingar em seu tórax.

Aos poucos Sarah ia se aproximando mais e mais, parecia que Raíza reduzia sua velocidade.

Mas enquanto viajava em seus pensamentos e hipóteses desesperadores, Sarah é surpreendida por uma lâmina prateada e incrivelmente afiada sendo apontada para seus olhos. Ela para bruscamente, quase tropeçando nos próprios pés.

-Quem é você?! Por que está me seguindo? - gritou o estranho.

Quando Sarah acordou do susto e levantou a cabeça para olhar quem estava por trás daquele pequeno canivete apontado para a sua cara, viu quem era.

Seu coração quase foge pela boca uma segunda vez. Como ela não viu Raíza se aproximando tão rápido? A cabeça de Sarah estava completamente embolada como os fios elétricos de um poste. Não sabia se prestava mais atenção no metal pontiagudo que a ameaçava ou no quanto Raíza ficava linda quando estava ameaçadora.

Mas antes que Sarah pudesse dizer uma palavra sequer, Raíza a olha como se a reconhecesse e, recuando brevemente o canivete, levanta a sobrancelha e diz:

-Espera, você não é aquela garota lá da sala que fica me olhando pelo reflexo de um espelhinho?

Sarah entra em choque. Sua pálpebra direita tremia junto com as pernas em uma quase perfeita sincronia.

"Fica tão óbvio assim?" pensava ela.

É claro que ficava óbvio. Se ao menos Sarah se preocupasse em camuflar o espelho e prestasse mais atenção quando Raíza estava prestes a notá-la, ao invés de se flutuar no imenso oceano de pensamentos que vinham em sua cabeça quando olhava para sua amada...

O suor escorria ainda mais pela testa de Sarah enquanto seu olhar seguia o canivete de Raíza que traçava linhas invisíveis no seu rosto, mas sem tocá-lo.

-O que você quer comigo?! - exclamou Raíza, se aproximando cada vez mais de Sarah -É bom falar antes que eu corte a tua cara!

-Cara, calma, pelo amor de Deus! - gaguejou Sarah, com um sorriso descontraído -Eu quero ficar contigo, só iss-

Na tentativa de explicar que não era uma ameaça, aquelas palavras de Sarah escapuliram de sua boca tão rápido que mal pôde raciocinar direito. Entretanto, quando percebeu, já era tarde. Só deu tempo para passar um "puta que pariu!" por sua cabeça.

Para a surpresa de Sarah, o rosto de Raíza se avermelhou quase imediatamente.

-Ah, era isso? E-eu... - gaguejava Raíza, enquanto trazia o canivete novamente para si, na intenção de guardá-lo.

Raíza não terminou a frase. Ao invés disso, agarrou o braço de Sarah e correu, puxando-a para o outro lado da rua.

-Vem comigo, conheço um lugar.

Por sorte, não passavam muitos carros por ali devido a curta largura daquela via. Fato esse que também evitaria possíveis curiosos.

Raposa não estava nem um pouco interessada em descer dali. Ficar sentada no alto do muro da escola parecia mais atrativo, porque, do alto, a visão das duas amantes encostadas no túnel que levava ao outro lado da cidade era muito melhor. O suficiente pra ver Sarah realizando seu sonho, porém com uma boa distância para dar privacidade às duas.

-Finalmente, caralho. - disse para si, suspirando de felicidade.

Sarah sentia o toque suave das mãos de sua amada envolvidas em seu corpo. Seus braços estavam ao redor do pescoço de Raíza e pareciam não querer soltar mais. Em qual universo poderia imaginar que uma garota, aparentemente tão cheia de espinhos, pudesse ter a textura da mais aveludada das rosas?

Os perfumes das duas dançavam em seus corpos no compasso daquele beijo, como se quisessem carimbar a lembrança uma da outra em suas roupas.

Sarah dava breves pausas, apenas para acariciar o rosto de Raíza com o polegar enquanto olhava em seus olhos coloridos e sentia sua respiração quente e ofegante perto de si.

Tinha o desejo de, ao fitá-la, poder gravar seu rosto em sua memória pra sempre, exatamente daquela forma: avermelhado, os lábios brilhando e as pálpebras abaixadas. Aquela era a visão que Sarah acreditava ser a do verdadeiro Paraíso.

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