Parte I

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O chão foi tirado de debaixo dos meus pés. Sou apenas um corpo em queda livre, sem nunca encontrar uma superfície sólida para me amparar. O mundo, como eu o conhecia, desabou por completo e de uma só vez.

Era uma tarde acinzentada, de um inverno particularmente frio, eu aguardava por notícias, na sala de espera do único hospital da cidade. até que os médicos se aproximaram de mim e anunciaram, sem demonstrar a menor comoção por trás do semblante gélido:

"Seu pai sofreu um acidente vascular cerebral e não resistiu."

Cada vez que essa frase ressoa entre minhas memórias, sinto meu coração se desintegrar. Entretanto, a dor da perda não é algo novo para mim, longe disso na verdade.

Quando tinha apenas quatro anos de idade, meus avós contrairam uma doença extremamente letal. Minha mãe foi ajudá-los, mas também se contaminou. Os três acabaram falecendo e, desde então, meu pai se tornou o único porto seguro no qual eu podia me refugiar.

Ele era a única constante em uma vida repleta de incógnitas que, a cada dia, parecem mais indecifráveis. Embora ele nunca tenha me explicado o quê exatamente aconteceu na casa de meus avós, eu sabia que podia confiar-lhe até mesmo os segredos mais profundos. A partir de determinado momento, percebi que precisava aceitar sua recusa permanente quanto às respostas para qualquer uma das minhas perguntas sobre esse terrível golpe do destino. Também resolvi não questionar a decisão de que nenhum de nós pisaria novamente naquela casa.

Porém, desde que ele se foi, há duas semanas, tenho pensado muito sobre essa resolução.

Sobretudo, diante das fotografias componentes do álbum de família, que têm me feito uma valiosa companhia nesses dias escuros. Minhas imagens favoritas possuem a velha casa como pano de fundo. Logo após a capa grossa, primorosamente bordada, há resquícios de uma época em que a vida coloria-se por tons rosados e a felicidade parecia infinita.

Ao encarar essas fotos, fui tomada por uma inexplicável necessidade de retornar aquele lugar. Uma necessidade demasiadamente intensa para ser ignorada.

Ao longo dos anos, uma sensação de incompletude foi surgindo em meu peito. Nos últimos dias esse vazio tem crescido num ritmo acelerado. Sinto que a única maneira de parar isso é resgatando essa parte de mim, perdida há tanto tempo.

Por isso, resolvi saciar o desejo que tento contornar há quinze anos.

*

A viagem não parecia tão longa quando visitava meus avós na infância.

Contudo, o sol ainda estava a pino no céu quando cheguei. Hesitei alguns instantes diante da porta, refletindo se colocava a chave de volta no bolso do jeans ou inseria aquele objeto enferrujado na fechadura.

Escolhi a segunda opção.

*

Todos os móveis encontram-se recobertos por uma camada de poeira, realçada pela luz solar que transpassa as vidraças. Não faço ideia de como devo começar as buscas. Talvez, nem encontre algo relevante. Mas sei que, antes de mais nada, preciso rever meu espaço favorito nesse casarão antigo.

Os degrais da escada de madeira parecem prestes a se dissolver sob meus pés. Porém, no interior do velho sótão, é como se o tempo não tivesse passado, tudo permanece exatamente como antes.

Objetos decorativos e revistas de décadas atrás repousam numa prateleira. Quinquilharias de toda espécie estão espalhadas pelos cantos. Por fim, recostado à parede defronte à entrada, há o guarda-roupa do qual vovó sempre tirava algum item surpreendente, que resultava em histórias cheias de elementos fantásticos.

Mais que depressa, corro até aquele grande armário de madeira. Com certa dificuldade, consigo abrir as portas ornadas por arabescos dourados. Deparo-me com os vestidos de uma época bastante remota, acredito que pertenceram à minha bisavô. Esperava que tivessem sofrido os efeitos da passagem dos anos, mas não havia sequer o tradicional odor de mofo ali.

Decido afastar um pouco as roupas para procurar as caixinhas de bijuterias e arranjos de cabelo, nas quais vovó sempre encontrava algo capaz de despertar nossa imaginação.

Entretanto, um detalhe me chama a atenção: há desenhos talhados no fundo do guarda-roupa. São arabescos, semelhantes aos da porta, que parecem apontar o centro daquele quadrado, onde identifico um orifício, cujo formato muito me lembra um coração. Mais especificamente, o pingente que compõe o colar que trago em meu pescoço. Trata-se do último presente que recebi de minha mãe.

Desprendo a corrente e encaixo o pingente no pequeno orifício. Não faz o menor sentido, mas um instinto, que talvez possa ser chamado de intuição, me impulsionou para que tomasse essa atitude.

No entanto, algo completamente inesperado acontece: o fundo do guarda roupas começa a se desfazer, partindo do centro para as laterais. Na sequência uma rajada de vento, extremamente forte, sopra em minha direção. De repente me vejo envolvida numa espécie de tornado.

Ainda pude ouvir o som das portas do armário fechando-se atrás de mim.

Ainda pude ouvir o som das portas do armário fechando-se atrás de mim

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