Memórias

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 — A que devo a honra da sua presença na minha cozinha? — ele me pergunta, visivelmente surpreso.

Eu respiro fundo e lembro a mim mesma de que não posso evitar meu marido pra sempre e já fugi dele praticamente o dia todo, tudo por pura covardia.

Estava pensando... e preciso que você faça uma coisa por mim.

Peeta para de misturar a substância leitosa no refratário (provavelmente um dos bolos que as crianças amam comer escondidas de mim antes do jantar). É um pequeno ato de desobediência acobertado por ele, mas todos sabem que eu jamais negaria o prazer da fartura aos meus filhos. No fim das contas, meus protestos contra os doces são apenas para manter a fachada de mãe durona e responsável.

Depois do que parece ser um longo minuto de reflexão, ele seca as mãos no pano, se vira e me encara de frente. Sua voz preocupada me tira do delírio e eu sorrio de maneira amável.

Você está com muita fome? Eu posso cozinhar algo rápido...

Interrompo suas palavras me aproximando devagar. Com uma coragem que nem sabia ter, tiro a colher das mãos do meu confuso e curioso esposo dando o meu melhor para esquecer que ele queria me matar noite passada.

Katniss, eu...

Eu sei, você sente muito. A culpa não é sua e a gente sabia que isso aconteceria. Não sou tão paciente quanto você merece que eu seja, mas eu sei que você não... quis dizer aquelas coisas.

Posso ver a dor em seus olhos, sempre tão doces. A noite passada em questão foi difícil e envolveu gritos incompreensíveis que só cessaram quanto Haymitch quebrou um vaso na cabeça de Peeta. Alguns surtos são piores que outros, mas consigo acalmá-lo na maioria das vezes. As crianças também ajudam como podem, e Peeta jamais é rude com elas, mesmo quando está fora de si.

O problema sou eu, sempre fui eu. Sua esposa, sua aliada, sua inimiga, seu alvo, a mãe dos seus filhos. Posso imaginar a confusão mental que se instaura cada vez que as memórias colidem e fazem com que ele desconfie da própria sombra. Snow foi cirúrgico quando decidiu que matar o garoto com o pão era a melhor forma de me matar também, ainda que não literalmente em nenhum dos casos. E, apesar de esta ser uma vida gentil e segura ao lado da família que construí das cinzas,  Snow segue uma presença constante e imortal que surge vez ou outra para me lembrar de que uma parte dessa minha vida ainda pertence a ele. E uma parte de Peeta não vai voltar.

[INÍCIO DO FLASHBACK]

Datas que nos lembram dos que se foram costumam trazer recordações amargas e nem sempre verídicas. Tendo isso em mente, talvez eu já devesse esperar pelo que ocorreu porque ontem seria o aniversário do pai de Peeta e ele tende a ficar mais sensível, mas é tudo muito não linear e abrupto de modo que os lampejos de consciência nem sempre ocorrem nas mesmas circunstâncias. Às vezes ele só chora em meu colo depois de colocarmos os meninos para dormir, nenhum pingo de agressividade ou fúria em seu semblante, apenas dor. Nós ficamos assim, silenciosos no escuro nos perguntando se o luto é tão infinito quanto o medo em nossos corações.

Mas ontem... ontem foi um dia capaz de causar inveja ao diabo. Peeta acordou sombrio. Seu beijo que me desperta todas as manhãs, normalmente intenso e de tirar o fôlego, foi um selinho respeitoso e apressado. Depois de três anos de casamento e dois Jogos Vorazes, ler suas emoções já não é uma tarefa complexa. Eu sabia que teríamos problemas no momento em que ele se trancou com suas telas até o anoitecer, envolto em um processo frenético de pintura sem hora para acabar.

Peeta só saiu do seu atêlie para fazer o jantar das crianças, o que me fez ficar um pouco mais calma porque a paternidade o ajuda a decifrar ilusão de realidade como nenhuma terapia jamais fez. No caminho de volta para os quadros, ele acariciou meu rosto com a ponta dos dedos, as mãos levemente trêmulas de quem está se esforçando muito para manter o controle e esconder o medo. Isso quase sempre significa que teremos problemas porque Peeta nunca reprime emoções a não ser quando está travando uma batalha interna com seus demônios.

A coisa toda aconteceu do nada, como sempre. Fui pedir se ele podia ir colher algumas flores para levarmos ao túmulo dos Mellark quando tive certeza de que era tarde demais. Encolhido em um canto da sala, Peeta encarava a parede agarrado às próprias pernas. Sua boca sussurrava palavras que não consegui compreender e ele batia a cabeça de leve na parede numa clara tentativa de buscar a dor física para afugentar a dor emocional. Acredite em mim quando digo que compreendo bem essa estratégia. Aliás, sou quase perita nela.

Quando chamei seu nome com a voz mais calma que consegui, seus olhos tranquilos não estavam mais ali. O azul ameno dos oceanos deu lugar a uma pupila dilatada, escura, selvagem, incendiada de ódio.

Peeta me fitou e parecia um lobo que encara sua presa sem piedade alguma, ciente de que vai liquidar com ela em instantes. A humanidade do seu rosto simplesmente não existia.  Antes de perceber, estou correndo para a varanda com a chave do quarto no bolso e o barulho de coisas sendo quebradas violentamente ao fundo. Os gritos tardam, mas vem depois e são tudo, menos humanos. Aquele não é o meu Peeta de fala macia, gestos delicados e um toque firme e preciso de quem me abraça como se sua vida dependesse do meu respirar. Aquele é o Peeta que Snow construiu após torturas inumanas, sessões eternas de surras, choques, perfurações, queimaduras, privação de sono, intoxicação... E sei que houveram coisas piores que ele não ousou me contar porque sabe que eu não suportaria ouvir.

A próxima coisa da qual me lembro depois desse devaneio é de estar berrando o nome de Haymitch com duas crianças assustadas no colo em meio à Aldeia dos Vitoriosos.

InconstânciaOnde histórias criam vida. Descubra agora