As Portas da Pandemia (conto completo)

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- Ai, que saudaaaades do tempo em que se isso daqui era agitado! Nem bem o sol nascia e começava a movimentação. "Bom dia", "Bom dia", "Quer que eu te ajude?" "Não, obrigada" "Pegou o guarda-chuva? A previsão diz que vai chover". Pessoas educadas, passando por aqui o dia todo. A rua cheia, vendedores passando, encomendas chegando... eu era feliz e não sabia.

- Está reclamando de novo, velha? Já não entendeu que isso é passageiro? Logo a vida volta ao normal e as pessoas voltam a pegar no seu nariz o dia inteiro. Abre porta, fecha porta...

- Bate porta... - se intrometeu uma voz do segundo andar.

- Boa! É isso mesmo, 23! Essa velha fica aí resmungando o dia todo, com saudades do tumulto. Não faz nem um mês que a quarentena começou. Aproveita, dona Alpha. Logo a vida volta ao normal e a senhora volta a reclamar do barulho, dos carros passando, de como as coisas eram boas em 1900 e bolinha.

- Ora, deixe de ser atrevida, número 12! Respeite minha idade que sou muito mais experiente que a senhora. Tenho, sim, memórias boas de quando me juntei a este prédio, em uma época em que vocês não eram nem sementes de árvores ainda.

- Ah, lá vamos nós de novo com essa história de carros puxados a cavalos, pessoas elegantes nas ruas, educadas, finas. Nós já sabemos Dona Alpha. A senhora é uma das últimas representantes de portas de madeira maciça, uma legítima Jatobá, da época que o Brasil era colônia, vinda uma linhagem que hoje não existe mais e cuja exploração nem seria permitida. Se não fosse a senhora repetir tanto essa história eu até que te respeitaria mais. Mas de tanto dizer a mesma coisa fica cansativa.

Entendeu agora? – 12 estava mesmo irritada. Dona Alpha então só resmungou.

Por ser a mais antiga e responsável pela entrada do prédio, dona Alpha se sentia superior às demais portas do edifício Dom João, um prédio antigo, de três andares, em pleno centro desta cidade grande do interior paulista. O nome "Alpha" foi ela mesma que se deu, porque entendia que tinha que se diferenciar das outras portas, de madeira de menor qualidade, que foram sendo colocadas e substituídas ao longo dos muitos anos de existência do prédio para delimitar a entrada dos apartamentos. O edifício, do final do século 19, já fora uma casa de nobres, depois foi reformado para se transformar em hotel e agora era um prédio de apartamentos, de tão grande que era.

Apesar das mudanças internas, a fachada continuava a mesma, assim com Dona Alpha, que se mantinha plena, servindo como um grande portal da rua ao hall do prédio, de pé direito duplo, chão de mármore branco e paredes texturizadas, dois grandes espelhos e colunas até o teto nas quatro laterais. A escada, meio mais utilizado para chegar até os três andares do edifício, também era de mármore, mas tinha a parte do meio dos degraus coberta por um tapete vermelho, já um tanto gasto de tanta gente que passava por ali todos os dias. Mas isso, como Alpha contou, era antes da pandemia.

Já 12, como o próprio nome diz, ficava no segundo apartamento do primeiro andar do prédio. Era uma porta de meia idade, originalmente branca, mas agora com a tinta um pouco gasta, quase amarelada. Mesmo assim, ainda firme e muito bem conservada.

Dentro de seu apartamento viviam uma mulher de 35 anos, divorciada, e seus dois filhos, uma menina de 7 anos e um menino, de 5. O estresse de ter duas crianças em casa gritando, brigando e chorando tinha deixado 12 com ainda menos paciência do que ela já tinha. Isso aliado à sua posição tão próxima à entrada do prédio tornaram suas discussões com Alpha ainda mais constantes. Mas, no fundo, ela gostava da velha senhora. Tanto que, depois de meia hora de silêncio, resolveu pedir desculpas.

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⏰ Última atualização: Jun 28, 2020 ⏰

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