Capítulo Único

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Iasmin caminhou até a janela onde havia deixado uma taça de vinho. Fazia frio e começava a chover, algumas gotas ao tocarem o batente da janela respingavam para dentro da sala molhando o chão, mas isso não a impediu de continuar naquele cantinho que adorava sentar para refletir sobre a vida. Particularmente, preferia quando chovia. O barulho ajudava a se perder em pensamentos, ainda que perder-se em si fosse, exatamente, o que estava evitando. Não precisava reconhecer seus demônios naquele momento, precisava viver a superficialidade de suas dores.

A taça erguida na altura do peito foi preenchida por um líquido de cor escura, uma movimentação automática que havia sido repetida sabe-se lá quantas vezes. Já passava das nove quando Iasmin decidiu que precisava dançar pra tirar de si tudo que a sufocava e prendia. Os movimentos fora de ritmo faziam seus cachos sacudirem. Os olhos estavam fechados e cada música parecia falar em seu íntimo palavras de consolo e ânimo. A vida seguia, apesar de todos os percalços. "Um passo por vez, como dançar", dizia a si mesma.

No outro cômodo da casa o telefone tocava insistentemente, ela ouvia, mas queria não ouvir. Talvez fosse problema e de problemas já bastavam os seus, por hora. Mais uma vez o celular tocou, e como uma criança arteira que negocia consigo mesma estipulou que só atenderia se fosse alguém da sua família. Não era família, mas era como se fosse.

"Diz, Fabiana."

"Porque você está irritada comigo se quem furou foi você?". Iasmin respirou fundo, não queria se alongar muito no telefone.

"Não estou irritada, eu só não quero conversar hoje", Fabiana pareceu contra argumentar quando Iasmin continuou "Ainda que seja meu aniversário, amiga."

"Tudo bem. Na verdade, a gente não precisa conversar, só comer. Abre o portão pra mim. Ah, e dá pra ouvir a música aqui da rua".

Iasmin correu até a janela e viu um guarda-chuva azul de bolinhas brancas aberto na frente do portão. No mesmo instante sentiu a raiva esquentar todo seu rosto.

"Puta que pariu! Você não sabe respeitar espaço, cara! Não vou abrir, pode ir embora."

"Iasmin, sei que você não quer me ver agora. Entendo o motivo, mas não vou deixar você passar seu aniversário sozinha. É uma data importante para estarmos com quem amamos."

"Você tá brincando comigo, né?". Fabiana se deu conta de que não havia escolhido as melhores palavras para convencer Iasmin a abrir a porta, mas não poderia se desculpar por algo que disse de coração, achava mesmo que em datas de renovações de ciclos era importante estar com quem se ama, numa espécie de ritual de renovação de si e das relações. E ela amava Iasmin, só não compreendia a expansão disso.

"Tá chovendo e tá frio. Eu já pedi pizza, ou seja, quando o menino chegar aqui você vai precisar abrir e eu vou entrar com ele."

"Eu posso dizer que foi engano." Iasmin respondeu num ímpeto de birra que julgou ser desnecessária. Ainda que estar no mesmo ambiente que Fabiana, após o beijo desconcertante do último encontro, fosse ser embaraçoso a outra estava ali, parada em seu portão depois das nove da noite de uma sexta-feira chuvosa impedindo que ficasse sozinha em seu aniversário.

Fabiana ergueu os olhos para a janela e fez silêncio no telefone, o olhar das duas se encontraram. Iasmin respirou fundo, era impossível dizer "não" àquela mulher, só esperava não se arrepender depois. 


A porta mal abriu e Fabiana se jogou em cima de Iasmin envolvendo-a num longo e apertado abraço. Nos primeiros instantes Iasmin manteve-se imóvel, mas logo cedeu ao aconchego, já familiar, dos braços de Fabi.

Taça de vinho *conto lésbico*Onde histórias criam vida. Descubra agora