O chão gelado dava calafrios em suas pernas quando acordou. Antes de tentar abrir os olhos repassava em sua cabeça tudo o que havia acontecido na noite anterior. A chuva vermelha, seu pai, o Sentinela, o vizinho. O vizinho! Agora conseguia se lembrar. Com uma das mãos o homem na sacada fazia um movimento com os lábios, mas nesse momento algo o atingiu, algum animal minúsculo que mordeu seu pescoço. Conseguiu ver a trajetória reluzente de um projétil rodopiante antes de sentir a picada, depois, escuridão. Ainda conseguia se lembrar de um sonho onde escutava o barulho de um dos caminhões de entrega, porém mais intenso do que jamais havia ouvido, muito mais próximo.
Agora sentia a superfície e o vento que soprava no local sem poder se movimentar, os punhos conectados de alguma forma. Tentou ficar de pé apenas para descobrir as mesmas restrições nos calcanhares. Foi quando percebeu que não estava sozinho. "Você está maluco, sequestrou o garoto!" A voz era a de uma mulher de meia idade, na frente dela a voz do homem que antes conhecia como seu vizinho, ou assim acreditava ser. Tornava-se cada vez mais difícil entender o que estava se passando, sua cabeça doía e a escuridão cobria todo o seu mundo atual. Ouvia apenas vozes, tendo a cabeça coberta por um capuz preto de tecido sintético. "Não tive escolha! O pai do menino já deve estar no fundo do oceano, eu salvei a criança. Inclusive, o garoto tem potencial... pode nos ser útil...". Meu pai! Lembrou-se vagamente da noite e da água que caía nas ruas vermelhas. "Você sequestrou o garoto!" A voz da mulher era cortada por sons de apito, como um dispositivo sendo acionado. O vento e a conversa entre as duas pessoas na sala o faziam desconfiar que estava bem longe de casa. Mesmo acordado decidiu permanecer imóvel, fingindo estar inconsciente enquanto as duas vozes brigavam.
"Você não estava lá, não viu o que vi. A chuva forte e o pai da criança indo resolver negócios obscuros com um Sentinela. Um Sentinela! Os mesmos putos que deveriam nos proteger". Era difícil não demonstrar qualquer reação diante das revelações que invadiam seus ouvidos. A voz do homem agora parecia se acalmar quando continuou. "Por semanas tenho observado Sindri, as saídas noturnas, algumas vezes o seguia. Não sei no que o velho estava metido, mas pode ser algo pior do que qualquer operação que tenhamos, quem sabe ele estivesse até entregando nossas rotas! Era questão de tempo até baterem na minha porta, ou sumirem com o garoto se fosse de alguma serventia... Digo, para acabarem com os pontos soltos". A voz da mulher não demonstrava qualquer alteração em sua indignação. "Você não tem certeza de nada, quem sabe esqueceu até seu próprio nome! Não faz ideia do que estava acontecendo. Diz que viu algo na chuva quando não é possível enxergar nem a própria sombra nos horários de precipitação! Não pode nem dizer se o homem está vivo ou o que ele fazia fora de casa. Ainda assim decidiu fugir, como um covarde envergonhado que fez algo que não devia, colocando em risco toda a operação!". "A operação se comprometeu no momento em que o pai do garoto se meteu com o que não devia". O homem insistia em sua versão, como se estivesse no confessionário de uma seita cuja pena para desobediência era aterradora demais para ser considerada opção.
"VOCÊ fez o que não devia! Confirmou isso trazendo o garoto até aqui! Agora saia da minha frente enquanto eu lido com suas loucuras. Vá checar o carregamento, a carga seca precisa ser escondida urgentemente e as frutas daqueles adoradores de terra começam a estragar no momento em que são retiradas das naves. E não tenha dúvidas, logo vai voltar para a sua casa e disfarce. Quanto ao garoto... Veremos".
Ouviu passos se afastarem e depois mergulharem no chão. "Eu sei que você está acordado". Disse a mulher quando percebeu que estavam sozinhos. Ela retirou o capuz que cobria seu rosto revelando um dos últimos andares de um grande prédio em construção, colunas cruas e no lugar onde deveriam existir paredes apenas espaços vazios. Só conhecia uma estrutura que pudesse subir tanto além das torres de água, mas duvidou de seus pensamentos. "Não tenha medo, Guido é inconsequente, mas tem boas intenções. Tanto é que ele te trouxe para mim, na certa sem saber o que fazer após ter realizado seu ato impensado. Eu sou Suong, logo encontraremos um lugar para você". O garoto não respondeu. Encarou Suong com uma expressão indecifrável cheia de sentimentos, raiva sendo o único que podia ser reconhecido. "Tome". Suong passou um retângulo embrulhado em papel prateado, Pedro simplesmente olhou para a barra e para a mulher. "Perdão, havia esquecido" disse soltando as mãos do menino. Em seguida desembrulhou o retângulo mostrando uma barra de algo marrom e sólido. "Você precisa comer. Antes que o último drone deixe a ilha alinharemos para que possa abandonar este local. É isso ou te devolver para onde veio. Lá um destino sombrio o aguarda ou pior, alguém pode te obrigar a dar explicações sobre o que viu". O garoto não estava faminto e apesar de esfregar suas mãos nos pontos em que as pulseiras de restrição magnética haviam deixado marcas não tocou na barra marrom.
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NÔMADES
Fiksi Ilmiah2126. A superpopulação assola as cidades. Uma ilha artificial no meio do oceano carrega algumas promessas e muitos segredos.