Capítulo 1

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No banco da frente do carro Josué conversa animadamente com o motorista. São quase seis da manhã e estivemos na estrada durante toda a madrugada. Eu poderia ter passado mais uma noite num hotel, depois de quatro dias de shows mais uma noite longe de casa não faria muita diferença. O quarto já estava reservado, mas acabei desmarcando em cima da hora. Precisava chegar o mais rápido possível em casa.

O desastre do último show não sai da minha cabeça. Eu ainda não havia terminado o setlist da noite quando o público começou a gritar o nome da música que eles queriam ouvir. Não era uma música minha. Apesar de conhecer perfeitamente bem a letra me recusei a cantar. Continuei o show ignorando o pedido do público, mas eles não se cansaram. Gritavam cada vez mais alto o nome do cantor que eles gostariam de ouvir. A maioria das pessoas que comprou o ingresso do show foi motivada pela minha semelhança com o meu meio irmão mais novo.

Igor.

É incrível o poder que esse nome tem de me desestabilizar. Já não sei mais há quanto tempo estou tentando superá-lo. Ao fim do show minha equipe selecionou alguns fãs para que eu atendesse no camarim. Entre uma foto e outra as ouvia elogiar o último vídeo que o meu irmão postou em seu canal no YouTube cantando uma de suas músicas.

É claro que eu assisti o vídeo. E não é que eu goste de me torturar, mas ele ousou tocar o violão do nosso pai. Do meu pai!

Eu tinha apenas dez anos quando o Igor nasceu, nunca vou me esquecer de escutar a conversa dos meus pais naquele dia. Papai contou que estava mantendo um caso com outra mulher e que ela havia tido um filho. Ele disse que o casamento com a minha mãe não estava indo bem e que achava melhor que se separassem. Nós sabíamos que o nascimento do mais novo filho era o motivo que o convencera a ir embora.

Ele se foi naquele mesmo dia.

O violão que ele tanto amava ia ao seu lado no banco do carona. Minha mãe ficou devastada. Eu precisei ser forte por nós dois. Precisei encarar o vazio que ele deixou na casa e em nossas vida. Apesar de nunca ter sido tão presente e, por vezes, passar dias viajando em turnês, a ausência dele se fez notar. Nunca mais acordaria agitado por saber que ele estaria em casa, nem convidaria todos os meus amigos para ficar na porta da escola esperando que o melhor cantor do mundo chegaria para me buscar.

Meu contato com ele se limitou a visitas em fins de semana esporádicos. Nos tornamos cada vez mais estranhos e a única coisa que ainda nos ligava era o amor pela música. Ele continuou pagando as minhas aulas para que esse último fio que nos mantinha unidos nunca morresse. Enquanto isso ele mesmo cuidava de ensinar ao filho mais novo tudo o que sabia.

Papai morreu num acidente de carro quando eu tinha vinte e dois anos. O sucesso de Igor veio logo depois quando ele postou um vídeo dos dois cantando juntos como uma homenagem de despedida. O vídeo foi como um golpe para mim. Papai estava tão feliz. Eu não me lembrava de já tê-lo visto daquele jeito. Igor ainda era uma criança, mas seus vídeos tomaram o país. Não demorou para que uma gravadora oferecesse um bom contrato. Ele era bom. Eu precisava ser melhor. Precisava que o meu pai, de onde estivesse, sentisse orgulho de mim. Precisava que ele soubesse que seria eu o filho a fazer sucesso com algo que ele tanto amava.

Mesmo seis anos depois meu irmão mais novo continuava sendo o queridinho da mídia.

— Sr. Saulo, — a voz de Josué me desperta do transe — chegamos.

Desci do carro ainda meio atordoado pelo sono. Josué já havia tirado as minhas coisas do porta-malas e equilibrava as bolsas e o meu violão enquanto tentava abrir o portão automático. Ele havia se tornado meu assessor pessoal cinco anos atrás e eu já estava acostumado com a sua insistência em fazer muito mais do que era pago para fazer. No começo ele cuidava apenas da minha carreira, mas não demorou para que ele começasse a tomar conta da minha vida pessoal também. Eu não era capaz de dar um passo sem que ele soubesse.

Lua de PrataOnde histórias criam vida. Descubra agora