Capítulo 4

0 1 0
                                    

Ele ficou engraçado dentro do meu pijama listrado. Precisou dobrar a barra da calça e a manga da camisa que estava sobrando. A calça era de cordão o que facilitou para que ele ajustasse ao seu tamanho, mas era notável que o conjunto era grande demais para ele. Não pude deixar de rir. Ele puxou um travesseiro da minha cama e atirou em mim.

Gargalhamos.

Não acredito que eu deixei de viver momentos assim por tanto tempo. Não acredito que deixei de enxergar Josué por tanto tempo. Ele era tão... bonito. Semicerrei os olhos enquanto esquadrinhava seu rosto. Ele também tinha a pele escura. Não como a de Raíssa, mas com certeza mais escura que a minha. Não havia pelos em seu rosto, o que o fazia parecer bem mais jovem do que eu, embora tivéssemos a mesma idade. Os lábios eram grossos e os olhos levemente puxados. Os ângulos do rosto eram bem marcados.

— No que está pensando? — ele ergueu uma das sobrancelhas curioso.

— Que devíamos nos sentar na sacada, a noite tá linda lá fora — falei enquanto dispersava os meus pensamentos. A sacada era o meu lugar favorito na casa. Foi o que me levou a comprá-la anos atrás. Durante o dia era possível ver o mar no horizonte. A noite, mesmo que eu não pudesse vê-lo, gostava de saber que ele estava lá. Gostava de ver o céu estrelado e a lua brilhando sublime.

Nos sentamos no chão da sacada e Josué encarou o violão que estava sobre uma almofada no canto. Era o meu favorito. O mesmo modelo que meu pai sempre usava em casa, com que me ensinou a tocar e que levou consigo quando foi embora. Comprei a réplica pouco depois do acidente como uma forma de mantê-lo sempre comigo.

— Então é isso que você faz no seu tempo livre? — ele questionou com um sorriso no rosto. Eu franzi o cenho confuso e ele apontou para o violão. — Cantar é tudo que você faz da vida?

Não consegui segurar o riso.

— Acho que sim... — confessei. — Mas cantar sozinho é diferente... Quando eu tô aqui... quando eu sinto o vento, vejo a lua e as estrelas... a música simplesmente corre pelas minhas veias e eu me deixo levar por ela. Eu não penso em porque estou fazendo isso, ou no que as pessoas estão esperando de mim.

— Mas não é isso que você deveria fazer sempre? — indagou.

— Não é simples assim...

— Você nunca parece confortável no palco. — Tranquei o maxilar instintivamente com o comentário.

— Você também não estaria confortável cantando para um público que prefere o seu meio irmão — disse mais ríspido do que gostaria. Eu não queria fazer isso. Não queria falar sobre isso.

— Se te incomoda tanto por que ainda se dá ao trabalho de tentar ser como ele?

— Eu não quero ser como ele, quero ser como o meu pai!

— Por que não se contenta em ser você?

Não soube o que responder. Não era como se eu tivesse escolhas.

— É muito pesada a comparação que a mídia ainda faz de vocês dois com o seu pai — afirmou. — Igor também não está confortável com isso...

— Não fale dele! — disse alto demais. Minhas pálpebras tremiam com a irritação.

— Não falar não vai fazer com que a sombra dele desapareça da sua vida — ele disse tão firme que eu senti meu corpo se encolher. Nunca havia o visto usar esse tom de voz. — Eu encontro o Igor o tempo inteiro na gravadora. Ele está cada vez mais exausto com toda a cobrança em cima dele.

— Cobrança em cima dele?! — explodi. Meu peito subia e descia mais rápido do que o de costume. — Ele mal precisa se esforçar para ser o queridinho do público e da mídia.

— Ele não quer isso, Saulo! Nunca quis... — suspirou. — Ele perdeu o pai com doze anos e desde então o mundo inteiro cobra dele que seja como o pai de vocês foi. Ele nunca teve a chance de pensar sobre o que ele realmente quer...

Engoli o seco.

Sabia que Josué estava certo embora ainda estivesse com raiva.

Raiva foi tudo que eu senti por muito tempo e eu estava cansado de me sentir assim.

— Eu sempre quis ser como o meu pai — eu disse quase num sussurro. — Sempre que estou no palco é nisso que penso. Dou o melhor de mim para ser como ele. Em cada música que componho estou sempre me perguntando o que ele faria.

— E o que você faria se pudesse cantar qualquer coisa? — franzi o cenho com a pergunta repentina.

Josué estendeu o braço, puxou o violão no canto e o entregou para mim com uma expressão desafiadora no rosto.

Eu fechei os olhos e comecei a dedilhar as cordas. Podia sentir a música em mim. A imagem do mar no horizonte foi se formando em minha mente se combinando com a noite estrelada. Abri os olhos e encarei no céu a lua cheia que irradiava uma luz prateada. Então eu cantei. Foi como se o mundo inteiro fizesse silêncio e dentro de mim tudo que havia era a minha voz, a lua no céu e os novos sentimentos que nasciam em mim.

Lua de prata no céu

Os brilhos das estrelas no chão

Tenho certeza que não sonhava

A noite linda continuava

E a voz tão doce que me falava

O mundo pertence a nós

Quando acabei de tocar descansei o violão ao meu lado e a minha mão foi de encontro a do rapaz ao meu lado. Nossos dedos mindinhos se tocaram primeiro e eu olhei em seus olhos como se procurasse por consentimento. Então entrelace os nossos dedos.

— O que deu em você hoje? — ele perguntou com um sorriso no rosto. — Eu nem te reconheço mais.

— Eu não sei — disse também sorrindo. — Mas sinto que passarei a vida agradecendo a Raíssa por ter invadido essa casa.

— Nada acontece por acaso — sua expressão ficou séria de repente e eu senti um aperto no peito. Sabia que estávamos pensando o mesmo. Tudo acabaria na manhã seguinte.

— Acho que temos que nos comprometer a fazer o que é melhor para ela — eu disse.

— Tem razão — ele balançou a cabeça antes de deitá-la em meu ombro.

Senti um calor percorrer todo o meu corpo. Era como se estivesse com febre, mas era bom. Meus batimentos aceleraram e eu aproveitei o pico de adrenalina para reunir coragem e beijar meu assistente. Já havia alguns anos que eu sentia outra boca na minha. Josué não teve problema em conduzir o beijo. Sua mão entrou nos meus cabelos e ele pressionou seu corpo no meu me fazendo arfar. Surpreendi a mim mesmo ao escorregar minhas mãos por baixo da blusa de pijama dele. A noite estava fria, mas eu conseguia sentir o calor do seu corpo.

Não me lembrava de já ter estado tão à vontade comigo mesmo. Não me lembrava de já ter me sentido tão leve. Eu quase não tocava o chão. Me sentia a própria lua no alto do céu irradiando felicidade.

Lua de PrataOnde histórias criam vida. Descubra agora