Sobremesa amarga.

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As mãos de Clara gelam enquanto ela tenta manter um pobre sorriso no rosto em seu jantar de aniversário. Ao seu lado, seu namorado exige que beba menos. Também exige que não fale sobre sexo com sua melhor amiga, sentada à mesa. Afinal, "o que as pessoas vão pensar de você?"
- A aniversariante precisa de mais vinho. Está quase sóbria. Isso não é um aniversário de 90 anos, por mais que pareça. - Diz Andressa se levantando de sua cadeira para servir mais uma taça para sua entediada melhor amiga.
- Eu não acho que Clara deva beber mais. No ensino médio vocês sentiam necessidade de cair bêbadas. O tempo não passou para você? - Disse João, ignorando qualquer olhar de fúria vindo de Clara.

Andressa olha nos olhos de João fixamente por cinco segundos. Cinco segundos rápidos imaginado o porque de sua amiga tão determinada, inteligente e segura de si, ainda estar com alguém tão mesquinho e controlador. Rapidamente segue a caminho do banheiro como quem tenta controlar um furacão de palavras engasgadas.

- O que foi isso? - Disse Clara no seu mais baixo tom, em uma tentativa falha de não chamar a atenção dos convidados.
- Eu. Te poupando de se envergonhar na frente de sua família e amigos. De nada.
- Você está no seu quinto copo de uísque, João. É você quem está me envergonhando agindo como se eu fosse sua propriedade. A única pessoa que sai de si com algumas doses de álcool é você.
- Eu já te falei pra esquecer isso. Você me fez perder o controle aquele dia, não o álcool.

Parte da tensão foi quebrada quando a mãe de Clara, Ana saiu da cozinha segurando um grande bolo com vinte e uma velas, enquanto cantava a tradicional música de parabéns.
Ao soprar as velas, Clara desejou mais que nunca se ver liberta. Desejou mais que nunca, sorrir verdadeiramente. Desejou mais que nunca, não ter medo de dizer adeus.

- Olha pra você. Parece tão adulta agora. Tão alta e bonita. - Disse Melinda, a mais doce avó desse mundo. Mas não se enganem. Melinda era terrível com seus 56 anos. Bebia e fumava como um Europeu desiludido com a vida. Tingia seus cabelos loiros, como sua filha, Ana. Vivia cada segundo de sua vida, as vezes, melhor que suas netas.
- Vó, qualquer pessoa é alta perto da senhora. - Disse Clara, sorrindo e apoiando os cotovelos nos ombros de Melinda.
- Eu diria que é meu charme. - Sorriu dando uma pausa. Olhando nos olhos de Clara, Melinda parecia se ver através de um espelho. Pegou sua bolsa, e por incrível que pareça, não era cigarro que ela procurava. - Tenho um presente.
Um relógio de bolso bem antigo. Daqueles que dão prazer de se ter nas mãos. Na prata bem polida, uma frase de Bukowski cravada: Não tenho tempo para coisas que não tem alma.
- Para você se lembrar que as coisas sem alma não merecem tempo. - Disse Melinda, gentilmente enquanto apontava com o indicador não tão gentilmente para onde estava João.

Clara dirigiu por meia hora até chegar em casa. João, estava bêbado demais para assumir o volante. Quando parava no sinaleiro e o silêncio invadia o carro, podia escutar a respiração pesada e esmagadora de João no passageiro. Não disse nenhuma palavra. Não esboçou nenhuma reação.
Tirou os saltos na porta, como de costume, andou até a cozinha para beber água enquanto soltava seus cabelos ruivos do penteado. Quando chegou ao quarto, notou João sentado na cama com um semblante mórbido que lhe fez pensar de o porque ter voltado pra casa naquela noite.
- Você me envergonhou muito essa noite, Clara.
- Amanhã podemos falar sobre qualquer coisa que queira. Está tarde e estamos cansados.
- Como vou conseguir descansar me lembrando das suas risadas com a sua avó, enquanto claramente falavam sobre mim? Como vou descansar, amor, sabendo que você colocou aquela música pra tocar de propósito enquanto sua mãe falava sobre aquela viajem onde você conheceu seu ex? - João se levantou rapidamente e segurou nos braços de Clara, que em choque, já sabia o que estava acontecendo de novo.
- Você não vai dizer nada? - Ele gritava enquanto lágrimas escorriam dos olhos de Clara que por vários momentos, tentou correr daquelas braços firmes sem obter resultados. João sorria como quem descobre grande prazer nas lágrimas de alguém que julgou amar por muito tempo. Gritava alto perto de seu rosto perguntando onde estava a Clara tão forte que todos viam e falavam.
Com toda sua força, a empurrou fazendo com que sua cabeça colidisse contra a parede. Em um momento tomado por raiva e medo, Clara conseguiu golpear João com um vaso decorativo de granito, que o fez desmaiar instantaneamente.
Clara observou o corpo de João no chão enquanto buscava fôlego. Notou o sangue no seu tom mais quente se espalhando pelo assoalho de madeira. Queria congelar o momento até planejar o que faria pelos próximos minutos. O que faria pelos próximos dias ou anos, mas sabia que não era detentora do tempo e que deveria tomar uma providência rápida levando em conta a quantidade de sangue no chão de seu quarto.
Com sua mão direita depositada em seu peito, tentou controlar seus batimentos e pensar racionalmente. "Uma ambulância, é claro."
Se fosse de sua natureza agir mais pela razão do que emoção, Clara chamaria uma ambulância. Teria uma conversa onde João estaria sóbrio. Iria embora daquela casa com razões mais que suficientes de consciência limpa por tudo.
Já que o certo e o errado são duas coisas relativas e o ódio cobriu o resquício de amor que ainda sentia por João, Clara não se deu nem mesmo ao trabalho de chegar o pulso de seu namorado. Ou melhor, ex.
Pegou uma grande mala em seu guarda-roupa e colocou rapidamente algumas roupas, sapatos e outros objetos que sua vaidade necessitava. Calçou seu salto que ainda estava no mesmo lugar e foi em direção ao carro, nos fundos.

Enquanto abria o porta-malas, viu seu vizinho Michael chegando perto de sua casa. Provavelmente por conta dos gritos. Michael já havia ajudado Clara outras vezes. João tem um longo histórico de embriaguez e agressão. Dessa vez, ela não precisou de ajuda.
Acelerou o carro sem dar importância ao seu vizinho na porta. Suas mãos estavam trêmulas mas não sentia nenhum medo ou remorso. Naquele momento, Clara não sentia nada.

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⏰ Última atualização: Sep 19, 2020 ⏰

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