Para além das nuvens

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 Serena caminhou lentamente pelo vasto campo montanhoso que se estendia para além da floresta. Em suas mãos iam um ramalhete de flor do campo. O vento soprava um pouco frio, mas ela mal sentia. Tinha conseguido vir em meio a muita turbulência da última da semana.

Fazia um ano que seu avô tinha partido. Seu último parente vivo. Seu último laço de sangue.

Sorriu pesarosa, pois perdê-lo foi um baque grande e ela ainda não estava inteira, nem mesmo com as férias dos meninos de três meses onde ficaram juntos e escondidos um mês inteiro. O tempo mais longo que tiveram para si mesmos, juntos, sem nada mais fora do mundo.

Ainda assim não tinha sido o suficiente. Dentro da sua alma, lá no fundo, ela sentia aquele fiapo se indo e se apagando do seu mundo.

Ela passou por todo o processo, de velá-lo, enterrá-lo onde ele mais amava e ainda assim... Aquela sensação de única no mundo a assolava. Ela disfarçava bem e sabia disso, mas na escuridão, quando estava sozinha, quando ninguém podia ouvi-la, ali ela deixava sair aquele sentimento de perda e impotência sobre o tempo inexorável que a tudo devorava, lento, sem pausa, onipresente e onisciente.

Ela tinha que resolver consigo mesmo pois sabia que seu estado de espírito já começava a afetar os meninos.

Jungkook foi o que mais externou a frustração e ela sentia muito por ele, por todos.

Ele tinha saído para uma festa com amigos para relaxar e ela sabia que grande parte da irritação emocional dele, era do humor pesado dela, mas claro que as fãs surtaram por ele sair em plena pandemia. Ela entendia o mais novo, ela entendia mesmo, por isso com a desculpa de ir visitar o tumulo do avô, ela cruzou o mundo e agora estava ali, nas montanhas, na cabana da família, para se resolver.

Estava com seus amores há mais de cinco anos agora. Ainda eram namorados secretos e como poderia ser de outro jeito? Eles continuavam em paradas de todo o mundo, na Coréia eram o espelho do kpop, o sucesso transcendeu as estrelas. Eles não poderiam se revelar e sinceramente isso incomodava mais os meninos do que ela.

Ela continuava morando em sua casinha singela e discreta, o que também os incomodava agora. Era uma situação complicada.

As vezes o assunto vinha à baila e nesses momentos a conclusão era que surgir na mídia como namorada do Hoseok era o menos problemático, mas ainda assim ela sempre apaziguava os ânimos, ainda não era hora, ela sentia... Ela só sentia.

Não queria um fandom gigante como aquele se voltar contra um dos donos do seu coração. Ela sangraria por ele, ela iria fazer algo que ia piorar ainda mais a situação se alguém machucasse seus namorados.

Suspirou e chegou ao tumulo do avô deixando as flores sobre a lapide simples e disse baixinho:

— Como vai, vovô? Eu ainda sinto muito a sua falta e meio que fugi de Seul para lhe fazer companhia e me fazer companhia, preciso de uma iluminação, preciso de algo fabuloso como um adagio de Handel - Fechou os olhos e terminou sentada ao lado do tumulo pensativa. Talvez um adagio não fosse suficiente, teria de ser alguma valsa inusitada de Strauss - Na realidade, vovô, eu preciso de algo como o Bolero de Ravel.

Concluiu rindo baixinho.

Às vezes, só um milagre absurdo e fabuloso poderia arrumar o que estava profundamente bagunçado, uma faxina só não resolveria.

Acabou voltando para casa com um humor melhor, ia ligar para os meninos, depois fazer uma sopa gostosa, relaxar tocando um pouco e amanhã poderia encontrar algum trecho do seu próprio bolero perdido por aí...

O plano era bom, mas no meio da noite começou a se sentir mal, com o estômago revirado e estranha e acabou indo no único hospital da cidade mais próxima da cabana em plena madrugada fria.

A comunidade era pequena e a conheciam desde pequena, então ela se sentia bem ali, bem o suficiente para não surtar porque podia estar doente com algo mais sério. Havia um surto de vírus no mundo e ela embora tivesse certeza de que estava ok e estava tomando todos os cuidados para se manter segura, ainda assim existia o risco. Afinal a Coréia tinha uma vigilância bem maior do que os Estados Unidos.

Fez alguns exames e esperou na sala de espera vazia. Ao menos ela era a única doente naquela atípica madrugada fria.

Só de manhã foi que o médico a chamou na sala para os resultados.

Dez minutos depois saia de lá completamente atordoada e chocada. Muito, muito perplexa até mesmo para pensar direito. Em uma das suas mãos estavam as vitaminas receitadas e na outra mão, o celular. As chaves e os documentos estavam no bolso do casaco, mas ela sabia bem que não estava em condições de dirigir agora.

Entrou no carro, ligou o aquecedor e deixou a verdade entrar em sua mente e em seu sistema completamente. Aos poucos, lentamente.

Em sua cabeça o som de Bolero começava a ressoar cada vez mais intenso e intenso, como era a composição original. Ele aumentava em intensidade e volume, ele aumentava enquanto sua alma ia assimilando e assimilando... Até que por fim, quando os pratos já soavam no ápice da música, ela sorriu lenta embora soubesse que se olhasse pelo espelho do carro veria que talvez houvesse um pouco de insanidade ali.

Aquilo... Aquilo... Era impossível, mas ainda real. Afinal ela usava anticoncepcionais e os meninos quase sempre camisinha. Ela tomava todos os cuidados e ainda... Ainda aconteceu. A voz do médico soou em seus ouvidos:

"O pai da criança é bom, vencer o látex e o anticoncepcional é um caso em um milhão"

Serena acabou rindo baixinho até se transformar em uma risada com lágrimas emocionadas.

Os pais eram bons, isso era inegável.

Desceu a mão na barriga ainda plana e suspirou.

Estava de quase dois meses e se lembrava bem que talvez tenha sido na noite em que eles estavam irritados depois de ficarem dias sem sair de casa e ela foi visitá-los. Só podia ter sido aquela noite, ela tinha sido levada a exaustão pelos sete ao ponto de acabar dormindo o dia inteiro depois.

A data coincidia.

Então arregalou os olhos. Espera... Eles iam surtar!

— Vovô do céu!? E agora?

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