Morte

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Sempre me disseram que quando eu morresse eu teria o que merecia. Deus me julgaria e eu pagaria por toda um vida cheia dos pecados que eu escolhi cometer ou simplesmente configuraram como pecado uma série de atos inevitáveis.

Então dá pra imaginar que quando me envolvi em um acidente de carro, colidindo com um ônibus a caminho da faculdade, arremessado pelo parabrisa dianteiro, percebi que ainda tinha consciência, que não era eu alí, mas de uma forma confusa e estranha ainda era eu, me senti sendo carregado por mãos invisíveis o único sentimento que me veio foi pânico. Simples. Puro. Imediato.

Lembro-me de, segundo antes de apagar, perceber a sombra da morte sondando meu corpo ensanguentado e coberto por cacos de vidro. Vi o desespero do outro motorista, pelo que ouvi, ele havia dirigido a noite toda e dormiu ao volante. Felizmente ele estava só no ônibus e, eu, só em meu carro. Resolvi perdoá-lo por tirar minha vida.

Se eu ainda tivesse um estômago para chamar de meu, ele provavelmente estaria revirando. Em matéria dos meus medos e ansiedades, sentia sempre um enjôo antes da calmaria. Talvez não era mais possível sentir os efeitos mortais da angústia.

E então me veio a mente, se é que eu ainda tinha uma, sobre o que teria depois daquele caminho. Sempre achei que um ceifador, ou Caronte, me levaria até o outro lado. Acho que tiraram férias na minha vez, estranhei o fato de não haver ninguém comigo. Apenas uma enorme escuridão sem fim e sem começo, enquanto eu era levado por mãos invisíveis de um lado para o outro. Como uma espécie de fantoche. 

Mesmo que fielmente cristão - católico, surgiu uma dúvida ao ver, ou melhor não ver nada por ali.  Não Seria a última dúvida, muito menos a primeira. Durante a vida, sempre fui questionado e condenado por não crer fielmente ou ao menos cegamente na doutrina que me entregaram no batismo.

Quem estaria me esperando quando eu chegasse? Se é que eu chegaria realmente a algum lugar. Será que eu era importante o suficiente para receber uma escolta até quem quer que estivesse me esperando? Se é que teria alguém me esperando. Com esse pensamento, provavelmente já estaria condenado, caso alguém me recebesse.

Era inevitável depois de tantos anos questionando tanta coisa acerca das religiões, principalmente a minha. Que eu questionasse até a morte, ou, no caso, depois dela também.

Senti as mãos me puxando subitamente para cima em um ritmo lento e até calmante, mas não o suficiente pra evitar que eu me perguntasse se haveria alguma música de elevador para o céu. Certamente, iria ser mais emocionante e causaria menos sono. Se é que almas sentem sono.

Quando cheguei até um salão enorme feito de colunas de marfim, percebi que não haveria música, e a parte inconsequente de mim se sentia decepcionado, enquanto todo o resto do que restava do meu ser estava em choque.

Eu estava localizado no centro exato de um cômodo de proporções monumentais, abaixo de mim no chão estava uma espécie de rosa dos ventos pintada a mão, parecia justo definir o rumo da minha existência pela eternidade sob uma rosa dos ventos.

Deus era filósofo, quem diria?

Percebi que a direita havia alguns objetos religiosos, uma placa, também de ouro, dizia que as almas poderiam escolher algum dos objetos sagrados para "agradar" teu Deus. - apenas ignorei.

Acima de mim ficava um lustre gigantesco, feito de cristais e o que parecia ser fogo puro e era simplesmente lindo, definitivamente um trabalho dos deuses.

Este pensamento mal cortou minha mente quando eu Os vi. Sim -Os-. Milhares deles, espalhados  pelas paredes de alto a baixo em tribunas suspensas em toda a minha volta. Alguns deles cochichavam e olhavam para mim de forma inquisidora, outros de forma gentil, e alguns com puro ódio. Não julgo, devem ter razões.

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