Sentença

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Finalmente! - pensei comigo.

Toda essa situação estava me deixando aflito e desacreditado.

-- Antes, só nos responda mais uma pergunta.

-- Claro. Já foram tantas, mais uma não fará diferença. - respondi indiferente.

-- Deixamos passar despercebido um detalhe na sua ficha religiosa. Você já se declarou ateu. Porque?E porque voltou? Como sabia de Asherah? -- questionou o deus cristão.

-- Bom, são três perguntas. - ouvi risos. Enquanto isso a luz me envolvia mais. Naquela altura, nada mais me preocupava. -- Parece que vocês não repararam muito em mim, não é mesmo? Vi tanta gente morrendo, tanta gente que batia no peito e acreditava em milagres. Que pediam todo dia por alento. Vi as religiões se voltando uma contra as outras, matando em seus nomes para provar que o Deus deles eram o verdadeiro. Vi gente com fome que pediam apenas comida em suas orações. Então perdi a fé. Comecei a pensar que ninguém estava escutando eles, que estaríamos sozinhos. Que de nada adianta crê.
Aí, comecei a estudar sobre a história das religiões. Comecei a descobrir todos os deuses das civilizações. Suas criações e mortes. Foi ali que descobri Asherah. Mas não crer, exigia mais fé. - meu olhar estava vazio, se quer que eu ainda tinha um olhar. Me recusava a me virar para eles novamente.

-- como assim, Ser ateu exige mais fé? - perguntou Juno

-- Não tem a que se agarrar. Quem ou que culpar. As responsabilidades se voltam para a existência humana. A morte perde a leveza e a ideia de reencontro perde o sentido. Tudo é sim ou não. O meio termo, a linha tênue... Isso não existe. É apenas a razão. Eu me sentia vazio e culpado. Comecei a meditar, pesquisar e um dia resolvi tentar me colocar na religião de novo. Mas onde eu ia só havia manipulação e mentira.
Decidi me manter onde nasci. No catolicismo. mesmo que raso, percebi que eles tentavam reparar os erros do passado, como a inquisição e a venda de indulgências. - Respondido. Qual é minha sentença? Julga-me se for capaz.

-- Raphael, sua sentença será....

Algo não deixou ele continuar. A luz me envolveu mais, rodeou minha cintura e me levitou. Senti ela entrar por minha boca e narinas. Um clarão emanou.

Minhas roupas se trocaram, agora eu usava um trage indígena, minhas tatuagens ficaram a mostra e o colar de rosa dos ventos colocado em meu peito novamente. Em minhas mãos, uma bússola.

Como instantemente e instintivamente gritei:

-- Minha mortalidade foi revogada. Eu sou Rafaíl semi Deus da dúvida e da certeza! A mistura de tudo e todos!

Fui colocado no chão. Os deuses estavam em choque. Tão em choque quando eu.

-- Então é isso que acontece? Quando passamos muito tempo com vocês? - perguntei

-- Não. - Asherah respondeu perplexa. - Era pra você ter caído no limbo. O purgatório. Quando não chegamos a sentença, os mortais vão para lá até que um veredito seja encontrado. Você foi excessão. É inacreditável.

-- Como é possível? Porque? - ouvi dizerem. Os murmúrios seguiram.

-- Qual seria minha sentença? - perguntei para quebrar o gelo.

-- Já não importa. Você se transformou em um de nós. Não sei como é possível. - disse o Deus cristão.

Aquela tribuna enorme se moveu. Um espaço foi destinado a mim. Caminhei até lá. Era de ouro, como quase tudo que havia no salão.

O lobo de Artemis me farejou e permitiu que fizesse carinho. Ele era adorável. Sorri para sua dona.

Minha luz era forte para um semi deus. Agora, não sei o que fazer.

Os deuses indígenas fizeram reverência, os gregos me abençoaram, os egípcios me deram força e coragem. Todos me ofereceram algo.

Exceto o deus cristão. Ele relutou. E agora, estaríamos presos um com o outro por toda a eternidade.

Talvez fosse melhor assim. Hoje tenho tempo para refletir sobre quem sou e quem fui.

Tudo isso: dúvida e a certeza, a morte o nascimento, humanos e deuses. São contrários, são momentos. Tudo isso, tem que coexistir em sintonia
Sempre me disseram que quando eu morresse teria a condenação que merecia. Que eu pagaria por meus pecados. Pagaria pelas tatuagens, pela dúvida, pelas drogas e principalmente por não crer em só Deus. Daqui, dessa tribuna posso ouvir o clamor deles, a dúvida e as certezas. Daqui, vejo todos os seis mil deuses. Agora, quase seis mil e um.

Acho que o motorista que me matou, merece perdão. O perdoei como mortal e agora irei perdoá-lo como imortal.

Talvez se ele não tivesse sido explorado a noite toda, não teria perdido o controle e batido no meu carro. Então nada disso teria acontecido.

Foi assim, que me tornei semi deus, ninguém sabe explicar. Vejo almas e sinto histórias e ainda visito meus iguais na terra quando dá.

A vida não é o contrário da morte. A vida é resultado. O contrário da morte é o nascimento. Talvez viver com toda a certeza que o mundo pode te oferecer não vala a pena, e duvidar seja muito perigoso.

Por isso eu sou a dívida e a certeza. A coexistência pacífica entre o caos extremo.

O que me faz diferente? Bom, não sei. Deixo a sentença com vocês que me ouvem agora. E se forem tentar me fazer de réu, como os seis mil fizeram, sinta-se livre e Julga-me se for capaz.

Semi deus Rafaíl.

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