Lendas

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Ariranha, 1998. Era junho, a cidade estava inteira enfeitada com bandeirinhas, o clima de festa junina reinava na cidadezinha do interior. Era a noite e a maioria dos moradores se encontrava na rua principal da cidade, comendo em barraquinhas, tentando a sorte com as brincadeiras e mandando correio elegantes. O garoto andava agarrado as mãos dos pais, não gostava muito de multidões, mas estava fazendo o melhor para se divertir. Poucos metros a frente um mágico estava fazendo uma apresentação para um grupo de crianças acompanhadas dos familiares.

- Quer assistir querido? – Disse Alice, a mãe de Eric.

- Uhum... – respondeu o menino timidamente.

A família se encaminhou para ver o mágico mais de perto. Ele estava se apresentando e se encaminhando para mais um truque. Eric ficou ao fundo tentando não chamar atenção para si.

- Para o meu próximo truque eu vou pensar de um voluntário, vejamos... – O mágico começou a correr os olhos pelas crianças.

As crianças se entusiasmaram e levantaram as mãozinhas para serem escolhidas, exceto Eric que se encolheu mais ainda.

- Que tal o garotinho ali do fundo? – Ele apontou para Eric que teve um sobressalto.

- E-eu?

- Sim, venha aqui! Você pode me ajudar com o próximo truque?

Eric balançou a cabeça afirmativamente e andou lentamente até a frente, ele pode perceber alguns cochichos das crianças e das famílias delas a respeito dele, sentiu seu rosto esquentar, porém fingiu não perceber e continuou a caminhar até ficar próximo ao mágico.

- Muito bem, qual o seu nome?

- Eric.

- Muito bem Eric, para este truque vou passar as cartas desse bolo, quando você disser pare, eu irei parar e você deve escolher uma carta e mostrar para a plateia, mas não me mostre, ok?

Eric fez que sim com a cabeça e o mágico começou a passar as cartas, o menino fez um sinal para que o mágico parasse e escolheu uma carta, viu e mostrou para a plateia, era um Ás de espadas.

- Muito bem, mas antes disso, minha esposa preparou uns biscoitos e os embrulhou aqui, você não quer desamarrar para comermos antes de finalizarmos o truque?

Eric assentiu e começou a desamarrar o lenço e as outras crianças se aproximaram para comer os biscoitos, ao final Eric viu que estava desenhado um Ás de espadas no lenço e mostrou para a plateia.

- Vejam só, parece que minha esposa me ajudou nesse truque.

As crianças bateram palmas e Eric começava a voltar para perto de seus pais. Até que uma das crianças, um garoto louro de rosto rosado fez o seguinte comentário:

- Truque mesmo seria fazer o Eric parecer normal, ou seja, exorcizar o demônio dele.

Instantaneamente as crianças começaram a rir, e até mesmo as famílias de algumas crianças riram. Eric simplesmente correu para longe de todos e foi se esconder. Misteriosamente ele havia nascido com diversas marcas espalhadas por todo seu corpo, até mesmo pelo seu rosto, sem nenhum padrão descoberto ou qualquer explicação médica. Ariranha era uma cidade pequena, muito católica então comentários maldosos começaram a surgir aqui e ali.

Eric correu até um carrossel desativado, pulou as grades e se sentou nenhum dos cavalos, ele observava as marcas nos braços e se sentia infinitamente infeliz por ser assim, ele só queria ser uma criança normal. Até que ao ver a figura de uma moça se aproximar ele se lembrou que mesmo que não tivesse nenhuma marca, ele ainda assim não seria normal. A mulher se aproximava lentamente dele, tinha longos cabelos cacheados e escuros, vestia roupas do século passado e parecia triste.

- Eu também costumava ir nesses carrosséis também quando era criança. – Ela deu um sorriso tímido.

- Por que você está aqui? – Perguntou o menino.

- Nessa época do ano eu me sinto nostálgica e ai peço permissão para visitar a Terra.

- Entendo.

- Por que você está triste?

- Porque eu nasci diferente, tenho essas marcas e como você pode ver eu consigo ver e falar com pessoas que estão mortas. Todo mundo me evita e fala pelas minhas costas.

- A vida é cheia de injustiças né?

Eis que os pais de Eric surgem em meio a escuridão, correndo em direção ao carrossel.

- Eric, ainda bem, venha, vamos para casa. – Chamou o pai do garoto.

O menino deu uma última olhada em direção a moça e ela havia sumido. Eric deu um suspiro e foi em direção aos pais. Ele passou a viagem de carro de volta para a casa em silêncio, os pais olhavam pelo espelho do carro preocupados. Ao chegar em casa o menino tomou um banho e foi para se quarto para dormir.

A mãe dele, Alice Sartori se aproximou com um livro na mão. Ela amava ler, era uma professora de história respeitada pela faculdade de São José do Rio Preto, uma cidade próxima. Ela havia viajado para vários países diferentes em busca de lendas, relíquias e museus, era especialista em civilizações antigas e havia feito uma tese sobre as lendas a respeito da cidade perdida de Atlântida que havia sido premiada pelo mundo todo. Em suas mãos ela trazia um livro sobre mitologia, um dos preferidos do menino.

Ele se aninhou e esperou a mão começar a contar mais alguma lenda. Ela começou a contar a história de um garoto que havia nascido com o destino de dominar o inferno, para isso ele precisava trilhar um caminho cheio de provações. A mãe mal havia chego na metade da história e o menino já havia pego no sono. Alice imediatamente fechou o livro e deu um beijo na bochecha do garoto e foi se deitar.

Eric teve um sonho conturbado, como se fosse uma premonição de algo que aconteceria, algo ruim. Até que uma voz começou a sussurrar: acorde, acorde, acorde! O sussurro se tornou um grito urgente e o menino acordou com o coração disparado e ofegante. A frente da cama a figura de homem de meia idade vestido de branco surgia a sua frente.

- Rápido menino me acompanhe!

Por algum motivo Eric sentiu que deveria obedecê-lo sem fazer maiores questionamentos. O menino calçou os sapatos e acompanhou o espírito sem fazer alarde. O garoto sentia como se estivesse em uma espécie de transe, não conseguia ver o que o cercava, mas sentia uma movimentação incomum de espíritos, espíritos trevosos que pareciam não perceber a sua presença. Ele continuou caminhando, seguindo o homem que carregava uma expressão bastante preocupada. Eric sentia uma espécie de angústia, mas não sabia exatamente o motivo.

Depois de mais alguns minutos andando ele se percebeu a alguns metros a frente de sua casa que agora percebia estar em chamas. Ele não entendia como isso estaria acontecendo, ele não havia sentido cheiro de fumaça, suas roupas não haviam sido queimadas.

- Ei garoto, não vai ser fácil daqui pra frente, mas você deve permanecer seguro e não deixar que tirem de você.

- Tirem o que?

O espírito sumira. Eric assistiu as chamas consumirem a casa, logo a polícia e os bombeiros surgiram no horizonte. Infelizmente os pais de Eric faleceram. Depois do estranho incidente, os comentários em relação ao garoto apenas pioraram. Ele passou a viver no orfanato da cidade que era cuidado pela Paróquia Bom Jesus e foi aí que sua vida começou a virar o inferno.

MarcadoOnde histórias criam vida. Descubra agora