Outono Dentro de Caixas

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_HALEY_

Outono...e pensar que foi nessa época em que tudo ao meu redor começou a desmoronar. Semana passada completaram-se dois anos desde que perdi meu pai,num acidente. Ele era piloto de avião,mas daqueles aviões enormes do exército,como nós vemos nos filmes. Como ele era um militar, eu e minha mãe recebemos pensão do governo,e estavamos vivendo relativamente bem,até que o senhorio da casa onde moramos avisou que o contrato estava para vencer.
Hoje estamos indo para uma cidadezinha no interior,onde não conhecemos absolutamente ninguém.

"É um bom recomeço" mamãe disse, ao menos mil vezes no percurso. Ela parece estar preocupada em me ver sempre bem desde que papai se foi. Eu não tenho estado bem, mas tenho feito meu melhor pra minha mãe não se preocupar comigo, já que o trabalho de faxineira já é bem exaustivo pra coitada.

— Não se preocupe mãe, eu estou bem com isso.

Eu disse isso sorrindo, então minha mãe logo respondeu com sua voz cansada de sempre:

— Que bom Haley...estamos quase chegando, e eu acho que você vai gostar da nossa nova casa.

Ela sorriu. Não era um sorriso verdadeiro, como os que ela mostrava quando dançava com papai na sala, ou quando ele lhe elogiava,mesmo que ela estivesse descabelada e com cheiro de água sanitária.
Olhei pela janela e observei a linha do trem que passava ao lado da estrada. Eu imagino o quanto essa cidade é pequena, porque não consigo ver nenhuma torre ou prédio, como eu conseguia na minha antiga cidade.

Cerca de 15 minutos se passaram. Fui até a escola fazer minha matrícula no segundo ano do ensino médio. A cidade é realmente pequena,já que só tem dois segundos anos na única escola com ensino médio daqui.
Voltei pra casa,já meio acostumada com o caminho. Mamãe estava preparando miojo com salsicha. Eu podia sentir o câncer entrando pela minha boca, mas aquele gostinho é bom demais.

_ALICE_

Talvez eu simplesmente devesse desistir de tentar explicar aos meus pais o que eu sou e como eu me sinto. Talvez eu deveria deitar na linha daquele maldito trem de carga e deixar que o peso da locomotiva varresse o peso da minha dor juntamente com meu corpo. Eu estou cansada dessa situação.
Meu nome é Alice,e eu sou uma garota trans. Meus pais não aceitam isso de maneira alguma, principalmente meu padrasto, que se diz um homem de Deus e à favor da família tradicional. Mas me diz uma coisa, que raio de família tradicional é essa onde o marido espanca a esposa e os filhos?

Hoje é mais um dia em que eu me deito na cama,depois de ter sido tratada no masculino várias vezes, abraço meu travesseiro e choro até desmaiar de cansaço.

Se tem alguém em cima me olhando, ou ouvindo...por favor, me deixa pelo menos viver até conseguir encontrar alguém que me respeite.

E esse foi meu último pensamento antes de desmaiar de cansaço.

Hoje é uma terça-feira de outubro. O mês acabou de começar e eu não vejo a hora de acabar. Me olhei no espelho, desejando ser uma garota bonita, passei um gloss que peguei da minha irmã e fui pra escola. Já estou no segundo ano do ensino médio, então não falta muito pra me livrar desse pesadelo.
Já na entrada da escola eu fui recebida com insultos por parte dos garotos idiotas da minha sala. Já é até normal pra mim ouvir "Rafael bichona" e "Rafael é tão gay que acha que é mulher" , mas por mais que isso seja comum no meu dia a dia, ainda dói demais.
Me sentei no meu habitual lugar no fundo da sala e abri meu sketchbook, tentando ignorar as bolinhas de papel que voavam em minha direção.

_HALEY_

Ok, você consegue. Apenas se apresente, responda algumas perguntas e se sente no fundo da sala.

Entrei na sala e a professora me anunciou, pedindo que eu dissesse meu nome e idade.

— Meu nome é Haley Andreas, eu tenho 16 anos e meu passatempo é andar de bicicleta e tocar violão.

Alguém perguntou se era "tipo o cometa" e eu respondi que sim. Meu pai me deu esse nome porque queria que eu fosse tão impressionante como o Cometa Halley.
Caminhei até o fundo da sala e me sentei ao lado de um garoto com cheiro de gloss de uva. Ele estava desenhando algo mas fechou quando eu me aproximei. Decide tentar fazer amizade, já que naquela sala cheia de estranhos padrõezinhos, ele era o único que parecia diferente, como eu.

— Oi...qual o seu nome?

— Pra que você quer saber? Vai ficar me zoando como todo mundo?

— O que? Eu mal te conheço, por que motivo eu faria isso?!

— Porque parece algo que uma garota bonitinha faria com uma feia como eu.

— Você é garota?

Ela virou o rosto pro canto.

— Sinto muito por ter perguntado isso. Qual é seu nome moça?

Um garoto que agora eu quero matar gritou da ponta da classe:

— Ele chama Rafael, mas acha que é uma menina. Viadinho de merda!

Essa é uma das horas em que a Haley neutra e pacífica morre e a Haley nervosa e perigosa surge das profundezas do inferno. Depois de uma boa quantia de insultos ao garoto idiota,voltei a atenção para a menina ao meu lado.

— Alice não é? Belo nome

— Como se alguém respeitasse ele. Me deixe em paz.

— Sem problemas...até mais tarde então.

Ao fim da aula eu estava voltando pra casa, olhando meu All-stas verde se encaixar no meio fio. A garota que eu me sentei ao lado passou por mim, parou na minha frente e disse:

— Meu nome é Alice e eu tenho 16 anos.

Depois disso ela andou tão rápido que sumiu.
Voltei pra casa e ajudei minha mãe a desempacotar as nossas coisas. Ao fim do dia estava quase tudo no lugar. Eu estava muito cansada, então simplesmente coloquei Girl in Red  pra tocar e me deitei a cama, tirando um cochilo.
Estava decidido, amanhã eu iria tentar fazer amizade com a Alice.

_ALICE_

Estou feliz que alguém finalmente respeitou meus pronomes, mas como sempre minha alegria durou pouco. Cheguei em casa e o lugar cheirava a álcool. Eu já sabia o que iria acontecer, mas eu não podia fazer nada.
Me deitei na cama e cobri a cabeça com o travesseiro.

Me desculpe mãe...um dia sua filha vai poder te proteger...um dia...


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