O Boticário Na Roça

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Ainda hoje me lembra duma aventurança que tive no tempo em que eu administrava uma botica. Ficava no aglomerado de casas, ao redor da praça com uma capela no meio, que chamávamos de Vila do Jequitibá. A praça era toda arborizada, com grandes pés de cambuís, ainda assim, o sol dava de frente a tarde toda em minha botica, fazendo do cubículo um forno; e em uma lufada de fastio que se apoderou de mim numa tarde dessas, enfadado daquele balcão calorento e das mesmas ladainhas da gente da vila, que em tudo achava doença para eu examinar, resolvi cerrar as portas e, num acesso de vesânia, arriei minha égua, tomado de um estranho sentimento de benevolência que me surdiu em curar a gente dos sítios circunvizinhos, que não se desentocavam de seus casebres. E saí, em busca de ar fresco, de distração, mais pensando em mim que na gente atulhada na roça.

Ganhei a estrada de chão vermelho, rija e poeirenta, que dava claros sinais de sentir o longo período de estiagem. Minha égua seguia trotando, morosa e paulatina, sem pressa, assim como eu, que observava os fenos de milhos amontoados na roça do Zé Ermitão, as vacas mirradas no pasto seco ao lado do Tonheca, ou mesmo as laranjas murchas do Dito Peixeira. Todos clientes meus, estes não precisavam de meus cuidados; segui em frente, admirando o azul do céu com várias nuvens desmanchadas pelo vento. Que inveja bateu-me! Aquele vento lá em cima apascentando as nuvens e nem um bafejar cá embaixo, e a égua seguia morosa, estava prenha a coitada, eu nem mesmo poderia dar celeridade ao trote para me sorver um bafejar na face; e seguíamos naquele chouto pachorrento:

— Pocotó! Pocotó!Pocotó!

Após algum tempo avistei um sitinho modesto depois da moita de bambu. Uma casinha minúscula, enleada por um canteiro de todos os tipos de flores, cada uma de uma cor: branca, azul, roxa, laranja, um espetáculo! Dobrei a égua e pequei o caminho que levava a ela. De perto era ainda mais modesta. O reboco quase todo caído, o tijolo a mostra, a janela da frente remedada de pregos tortos e a tramela da porta era um pedaço de arame farpado. O mastro triangular de São João quarado pelo sol pouco se via as figuras.

Apeei, senti lá de fora o cheiro de fumo, percebi haver gente em casa.

— Ô de casa!

— Ô de fora! Vamu chegando...

A voz masculina que se chegou até mim era velha, rouca e cansada. Empurrei a porta vagarosa, fez um silvo melancólico ao abrir e a visão lá de dentro era mais melancólica ainda. A casa havia parado no tempo, as mobílias deveriam ter sido trazidas nas caravelas, a luz era morta assim como o ânimo das duas figuras que avistei na penumbra. O recender de fumo dominava o ambiente. O homem nem sequer moveu o olho com minha entrada, envolto em uma nuvem de fumo se seguiu balançando em sua cadeira num nhec! nhec! enfadonho. Aproximei-me, ambos seguiam circunspectos, apenas a velha me dava os olhos, sentada em um sofá roto de coro marrom, todo rasgado dando mostra às espumas e coberto com um lençol de retalhos, ela observava-me com o pito na boca e lenço na cabeça, esguia e miúda, coitada! Tirou o pito da boca e me ofereceu.

— Vossa graça pita?

— Sim, mas só após o jantar, obrigado!

Olhei para o lado atraído pela gargalhada que deu o velho, o sorriso na vacância de alguns dentes, destacava-se na pele escura queimada ao longo dos anos pelo sol a longa barba alva.

— Ele não quer o pito da boca de veia!

Constrangi-me, não sabia mais que fazer quando o velho com os olhos miúdos e vermelhos me ofereceu a cadeira ao lado.

Sentei-me, coloquei a bolsa no regaço que tilintou os frascos dentro dela.

— Vossa graça vem de longe? — perguntou-me ele.

— Bem, sim e não. Eu morava na capital, mudei para cá faz dois anos e abri uma botica...

— Ah! É o farmacêutico da vila!...

O Boticário na RoçaOnde histórias criam vida. Descubra agora