Nevasca

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Seguindo para o interior da Inglaterra sobre os trilhos, entre vales, rios, ravinas, uma mata virgem e enormes pinheiros de tons sombrios; sou acordado pelo som ensurdecedor da locomotiva que me faz pular do banco onde adormeci. Um pouco assustado e com a visão ainda borrada pelo despertar repentino, observo através janela a neve que caía fortemente dos céus cobrindo de branco toda a extensão da floresta em volta. Das montanhas ao lado alguns pequenos deslizamentos de neve aconteciam por causa do estrondoso barulho feito pela buzina deste grande amontoado de ferro. Percebo que o embaçado não se deve a minha visão e sim ao vidro que se encontra umedecido por conta do frio, uso da ponta da manga de meu casaco para limpá-lo. Na mesma cabine me acompanhando na viajem está uma bela moça, esbranquiçada, de cabelos alaranjados e pequenas sardas na região do nariz e acima das bochechas, apesar de não conhecê-la, essa jovem me acompanha desde meu embarque na estação ferroviária de Paddington (Londres), - a única que tem acesso a estes lados do país. É curioso essa moça nem ter se movido por causa do estrondoso barulho que fez a locomotiva, noto em sua face singela e descontraída que deve existir um costume em viajar nestes transportes barulhentos, caso contrário ela teria pulado do banco, assim como eu mesmo fiz. Gostaria de ter tal habilidade em adaptação, além de meu sono ser leve eu também fico com inúmeras dores pelo corpo dormindo em lugares como este, principalmente no pescoço.

Agora sem a umidade que deixava o vidro turvo eu consigo ver melhor os arredores de onde paramos, não sei como é aqui no verão ou na primavera, mas neste momento a visão é desoladora e um pouco angustiante. Percebo a movimentação de algumas pessoas ao lado de fora de minha cabine, o corredor desta locomotiva e bastante amplo e as cabines também, talvez por isso que faz tanto frio aqui dentro.

Tomando cuidado para não despertar a jovem que dorme à minha frente - como se fosse possível operar tal feito - abro a porta da cabine e olho atento nas duas direções procurando alguma resposta, as pessoas que andavam pelo corredor e entre o vagões na verdade são crianças, os adultos permaneciam sentados, dormindo, lendo o jornal de ontem ou simplesmente observando a vastidão pálida através das janelas. Me abstive em ir perguntar aos outros passageiros, visivelmente eles não sabiam de nada e muito provavelmente não faziam questão de saber, como era minha primeira viagem para estes lados do país, tudo me parecia novo e corriqueiro, afinal, sou um homem da cidade grande, este tipo de coisa não costuma acontecer por lá.

Já desistia de procurar explicações do que havia acontecido quando avistei o comissário que checou as passagens no início da viagem. Permaneci em pé na porta da cabine aguardando sua aproximação, ele vinha caminhando lentamente e parecia estar apático a qualquer coisa, em suas mãos balançava um molho de chaves e passava ligeiramente os olhos ao seu redor de um lado para o outro. Tenho certeza de que ele me avistou em pé, porém não fez a mínima questão de dirigir sua atenção a mim. Quando finalmente se aproximou - mais indiferente impossível - quase passou reto sem me proferir uma palavra, fui obrigado a usar de minha compostura para não ser rude àquele homem desagradável. Seguido de uma leve tossida, primeiramente lhe desejei um bom dia e logo me pus a perguntar a razão pela qual havíamos parado em meio a nevasca. Sem nenhuma educação o comissário gordo, da pele oleosa, bigode desgrenhado e calvície galopante me olhou de cima a baixo e me respondeu curta e diretamente, disse que se tratava de uma parada técnica e que não sabia quando retomaríamos a viagem. Suas palavras não foram o problema e sim como elas foram proferidas, ele me respondeu com arrogância e agiu como se eu fosse abrigado a saber disso - animal repugnante.

Recuei para dentro da cabine levemente irritado, voltei a me sentar no desconfortável banco, o couro falso do acento havia ficado um gelo, assim como todo o lugar. Minha respiração ficou tremula e o simples ato de fechar as mãos se tornou um incomodo pois estavam dormentes e enrijecidas de frio. Mais uma vez voltei a observar a belíssima moça na minha frente, como era possível dormir tão bem em meio a tanto frio? Realmente muito estranho, parecia até que ela estava morta.

Bom, a enorme locomotiva se move a vapor, ou seja, calor, seria possível a caldeira ter congelado? Acredito que não, essa máquina foi projetada para suportar andar até mesmo em temperaturas extremamente baixas, o que me leva a outra hipótese... algum bloqueio nos trilhos? É possível! Mas isso não importa, não se trata de atraso, se permanecermos muito tempo parado aqui iremos congelar. Todavia, eu pareço o único preocupado com isso.

Sem nada para fazer e ansioso, fico olhando constantemente para meu relógio de bolso - que ganhei de minha mãe -, são quase 9:00 da manhã, levando em consideração o que dizia o itinerário, nós deveríamos chegar no vilarejo de Costworlds por volta das 10:00. Embarcamos ontem às 23:00, já faz 10 horas que estou preso dentro deste monte de ferro e agora parece que vou ficar mais tempo ainda, realmente a situação não pode ficar pior!

Quanto mais eu assisto a neve cair lá fora mais eu me questiono o porquê de estar indo nesta viagem estúpida em busca de acordos que certamente não irão acontecer. Os residentes da tão almejada propriedade não vão ceder, se eu tiver sorte talvez não me escorracem para fora de suas terras com pá e foices. Por isso eu acho que seria muito mais fácil mandar derrubar tudo e começar a construção, depois pagar o valor, eles que se virassem depois. Infelizmente não é assim que funciona, meus superiores desejam por uma resposta formal e positiva, um contrato assinado. Talvez esses moradores nem saibam escrever, eles estão lá a gerações, não vejo nenhuma chance de abrirem mão e assinarem, mesmo eu sendo um ótimo negociador.

Estou prestes a ter uma hipotermia e nada, faz 2 horas que estamos parados no meio dessa imensidão branca e gelada, o energúmeno do comissário não passou mais e, ainda nenhum sinal vindo da moça, tenho receio em ir incomodá-la e acabar sendo repreendido por minhas ações. Pois bem, ficar sentado aqui congelando não vai ajudar em nada, preciso me movimentar, vou dar uma volta e tentar produzir um pouco de calor para meu corpo.

Sigo rumo ao fim da locomotiva, os vagões são bem largos e comportam as grandes cabines que cabem até 6 pessoas, contudo estes lugares não estão todos ocupados, pelo contrário, a maioria permanece vazio, receio que poucas pessoas venham para estes lados da Inglaterra, principalmente nesta época do ano. Durante minha calma caminhada entre os vagões me veio lembranças de horas atrás, saí de meu conforto em Londres e deixei minha mãe sozinha para vir a este fim de mundo a pedido da empresa, não poderia ser mais horrível. Quando embarquei na estação a bela moça dorminhoca escolheu vir em minha cabine, por um instante pensei que a viagem se tornaria boa, mas então após sua entrada ela veio explicar seus motivos, de acordo com sua explicação viajar sozinha lhe preocupava e não a deixava dormir, por isso desejava estar na companhia de alguém, dito tudo isso sem eu nem mesmo tê-la questionado ela foi logo alocando sua bagagem, se deitou, esticou as pernas e dormiu. Por um curto período ainda aguardei o seu despertar, para quem sabe iniciar um breve cortejo, porém logo desisti da ideia. Estranho ela se acomodar tão bem na presença de estranhos, por causa desse sono repentino não tive nem a oportunidade de perguntar seu nome. Pouco tempo depois daquilo eu adormeci também. O que mais está me assustando nela é o forte sono que perdura, sua posição imóvel e cadavérica me preocupa... contudo, talvez seja algum tipo de hibernação.

Quando enfim cheguei ao último vagão e estava prestes a retornar de meu curto passeio, a locomotiva começou a se mover repentinamente me fazendo vacilar e cair para trás sentado, por sorte não havia ninguém nos últimos vagões que pudesse ver e imediatamente rir de minha cara. Ainda um pouco desconjuntado retornei rapidamente à minha cabine.

Ao chegar uma surpresa, aonde está a moça que seguia viagem comigo? Olhei em volta assustado, por que ela sumiu? Suas coisas não estavam mais ali, nem um rastro de sua presença permaneceu no local.

Outra vez o comissário se aproximava, - diria até que coincidentemente - lhe abordei de novo, estando muito alvoroçado e curioso quase o puxando pelo colarinho eu o perguntei sobre a moça que viajava comigo, ele indiferente e se afastando uns passos para trás me respondeu que não reparou em ninguém sentado nesta cabine a não ser eu mesmo, ele se virou bruscamente e continuou andando; antes de tomar distância exclamou em voz alta pedindo que eu entrasse na cabine e me sentasse no meu lugar, a locomotiva estava em movimento.

Me mantive perplexo, olhei nas laterais do corredor através da janela da cabine procurando por seus vestígios, mas aparentemente nada mudou, as pessoas continuavam da mesma forma, uns dormiam, outros liam jornal, e nada da moça que estava sentada comigo...

O Mal Vindo das EstrelasOnde histórias criam vida. Descubra agora