Desembarque Irônico

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    Bom, não vou me incomodar com isso, desde o início ela já não me apresentou uma conduta muito adequada, nem mesmo se apresentou formalmente; seu paradeiro não me interessava, apesar de me instigar.

    Agora que a bendita locomotiva voltou a andar creio que chegarei lá ainda hoje! Ah, este tipo de escárnio não é de meu feitio, pelo menos não enquanto vivo um monólogo mental, não tenho o costume de ficar tanto tempo inoperante em minhas atividades rotineiras, que se aplicam a conversas, no mínimo. Em minha humilde, porém aconchegante sala, passo meus dias estudando, analisando e resolvendo os trâmites da companhia. Meus superiores pouco me importunam em minhas atividades corriqueiras pois sabem que sou o melhor no que faço, diria até que sou um cobiçado advogado da capital, se não fosse o fato de que sempre trabalhei lá, mesmo durante a faculdade, nunca precisei bater na porta de nenhuma empresa. Por ser o melhor no que faço acabei nesta armadilha do destino, como recusar uma tarefa tão cercada de mérito? Outros tentaram e não conseguiram, e aí chegou minha vez.

    Não estou exigindo nenhum advogado a bordo como eu, ou um juiz para que possamos tomar o chá da tarde enquanto discutimos a expansão territorial e econômica que a rainha Vitória vem proporcionando a nossa amada pátria, que sem dúvidas é a maior potência colonial do mundo e por isso mesmo as empresas de engenharia como a que trabalho vem crescendo tanto. Deus salve a rainha.

     Oh céus, minha paranoia aumenta enquanto a temperatura abaixa? A que ponto a falta de interações intelectuais nos leva. Talvez seja a saudade prematura do aconchego de Londres, estar rodeado desse manto branco gigante desperta o lado vazio de qualquer um, a cada curva mais branquidão, mais pinheiros, mais montanhas. Nunca pensei que me angustiaria tanto saindo de minha zona de conforto, sei disso porque não se passaram nem mesmo 24hrs desde o último momento em que estive em minha cidade e já me encontro aos nervos.

    E ouça só, outra vez ele se aproxima, balançando seu molho de chaves irritante. Não tive outra opção, abri minha elegante mala feita com coro de jacaré que ganhei de meu chefe no último outono, retirei mais algumas peças de roupas e tive a ideia de usá-las para esquentar minhas mãos, as enrolei bem nos punhos e sentei sobre eles na esperança de que o calor viesse logo. A touca eu já usava desde o início da viajem, havia vestido minhas roupas mais quentes e ainda senti como se fosse me despedaçar em pequenos blocos de gelo.

    Dormir seria impossível. E essas outras pessoas? Como podiam estar tão confortáveis com esse frio de matar? Não me admira eles serem da região de Costworlds – pelo menos eu acho que são.

    Passaram-se mais uma hora no inferno congelante. Estamos nos aproximando do destino, o gordo das chaves fez questão de nos avisar. Falou especialmente mais alto quando passou pela minha cabine.

    Teríamos chegado antes se a locomotiva não estivesse andando mais devagar desde quando retomamos a viagem, eu diria que agora ela opera na metade da velocidade original da qual saímos de Paddington.

     Tomado por tédio e frio voltei a observar pela janela que insiste em embaçar minuto a minuto. Um som ecoado de longe irrompia os vidros que me separavam do chão feito de algodão, um som oco, uma batida forte. Era ritmado, o barulho do golpe acertava algum objeto inferiormente resistente, contava 3 segundos e outra batida. Cheguei à conclusão de que aquilo se tratava de alguém louco e solitário cortando uma árvore, neste frio! O som ficou para trás. Mais à frente, graças a nossa lentidão sobre os trilhos eu consegui presenciar uma visão muito... distinta? Seria essa a palavra? Bom, creio que sim, afinal ver um enorme lobo cinzento morto as margens da entrada do bosque não é algo que se vê todos os dias.

     Mesmo estando devagar não pude ver o que abateu o pobre animal, seria o companheiro do lenhador não tão solitário lá de trás? Um pouco distante do corpo do lobo enxerguei uma sombra adentrando novamente no bosque, uma sombra consideravelmente alta; um urso? Afinal, não escutei barulho de disparo para considerar um caçador, ou um amigo vigiando a área enquanto o outro abate um lindo pinheiro. Neste frio é mais provável que seja um urso mesmo.

O Mal Vindo das EstrelasOnde histórias criam vida. Descubra agora