Capítulo 1

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Quando chego ao portão e vejo Sara do outro lado da rua me lembro de que ela ganhou um carro de presente de natal e isso não faz eu me sentir menos pior do que antes. A primeira coisa em que penso é que o mundo nunca foi, nem será, um lugar justo. Eu ganhei meias e dois livros de Tia Júlia, e não posso reclamar dos presentes porque apesar de ter sido natal há menos de uma semana, em minha casa não há clima para celebrações já faz um bom tempo.

Sara acena quando me vê saindo pelo portão e com um sorriso largo no rosto atravessa a rua correndo na minha direção para me dar um abraço. Eu penso que o sorriso é exagerado, mas aceito o abraço porque realmente preciso dele, e porque já faz mais de duas semanas que eu não a vejo, desde a nossa formatura.

— Como você está? — ela me pergunta afrouxando o abraço e me olhando de frente enquanto passa uma das mãos em meu rosto e a outra em meu cabelo molhado.

— Eu tô bem — digo, e ela sabe que é pura retórica, que eu não tô nada bem e que só estou indo para a casa dela porque Tia Júlia insistiu muito para que eu fosse.

— Eu estou feliz que você vai passar a virada comigo — ela diz com o sorriso largo ainda no rosto.

Não posso repreendê-la pelo sorriso, sei que ela me sorri dessa maneira porque pensa que todo tipo de tristeza pode ser combatida com um sorriso largo, mas enquanto a vejo entrar no carro zero quilômetros ainda com o sorriso estampado no rosto me culpo por pensar mal de minha melhor amiga. Ela não tem culpa do que está acontecendo, e não é culpa dela que o mundo seja cruel e injusto, que para alguns reserva carros novos no natal e para outros reserva desonra e enfermidades.

Entro no carro depois dela e tento sorrir de volta, mas ao invés de debochar do meu sorriso amarelo forçado ela finge não notar que não tenho forças suficientes, ou razão, para erguer os músculos da face e dar-lhe um sorriso melhor.

— Conecta o seu celular — ela diz apontando para o rádio do carro. Eu sei que ela está tentando ser gentil e evitando tocar num assunto delicado. — Você escolhe a música.

Faço o que ela me pediu, mesmo com medo de gastar o pouco de bateria que ainda me resta no celular e com isso correr o risco de não conseguir receber chamadas caso aconteça alguma emergência. Mas então lembro que tia Júlia disse que ia ficar tudo bem, que eu tinha que sair um pouco, mudar os ares, ver os meus amigos e tentar seguir a vida, porque independente do que pudesse acontecer eu continuaria sendo quem eu era. Isso me confortou no primeiro momento, e eu estava ansioso por poder voltar para casa para tomar um banho então escolhi acreditar nas palavras dela, mas agora fico pensando que o que ela disse não soa tão reconfortante assim.

— Me dói a cabeça — digo para Sara como que justificando porque deixei a música tão baixa. — Me sinto nervoso, desculpa. Não sei se é uma boa ideia isso.

— Tá tudo bem, Tim — Sara diz, mas dessa vez sem abrir o sorriso, mas com uma voz mais morna e mais terna. — Eu vou tá lá com você, a Stefanie e o Pedro também. E, qualquer coisa, você sempre vai ter o meu quarto.

Ter o quarto dela significa ter um lugar onde me esconder onde ninguém ousaria me perturbar, e é por essa segurança que eu estou embarcando nessa ideia conflitante de celebrar o ano novo em uma festa apesar de tudo o que vem acontecendo comigo. O quarto de Sara é um santuário, tanto para ela quanto para mim, e desde que começamos a nos juntar para festas, fossem essas pequenas ou grandes, o acesso ao quarto era extremamente proibido. Sara não se importava se destruíssem a casa chique onde morava, mas seria capaz de matar quem entrasse e mexesse em alguma coisa em seu quarto — exceto eu. Já me escondi no quarto de Sara tantas vezes que sequer posso contar, sei onde fica cada um dos seus ursos de pelúcia cafona, os batons de marcas caras e as drogas que ela finge que não usa.

LENITIVO | Romance Gay (Reescrito e editado)Onde histórias criam vida. Descubra agora