O sol descia por trás das tendas e cabanas e do cercado espinhoso, refletia no deserto de terra avermelhada que levava ao vazio do horizonte, acentuando os tons quentes, mas de forma amena. O tempo de colheita acabara e os cargueiros subterrâneos estavam carregados, prontos para dirigirem-se aos Côndomes. A tarde parecia descansar, a lua descia gélida e terna, enquanto o sol sumia como se estivesse preparado para dormir e nunca acordar. Talvez ele sentisse o mesmo cansaço de todos os trabalhadores Hobleus. A brisa noturna perpassava pelo Purgo; abraçando e acariciando as costas queimadas e chicoteadas pelos raios solares, durante o trabalho no campo. Todas as cabanas estavam silenciosas, aproveitando o frescor do luar, até mesmo Hobleus que dormiam agrupados próximos ao entulho pareciam se confortar de maneira sonolenta; no entanto, uma cabana ainda resguardava excitação e o fervor, dificilmente encontrados nos rostos dos Purgos. As forragens de palha rompiam a baixa luminosidade de uma fogueira no interior da pequena construção de madeira, dentro dela um grupo de crianças esperava ansioso pelo melhor momento do mês, essa seria a noite em que eles se entreteriam com as historias de um sábio adulto. Apesar de não ser avançado em idade, Luké carregava uma grande bagagem de conhecimento e atraía muitos jovens que buscavam uma folga da vida miserável do vilarejo. O grupo (por volta de 12 crianças) estava sentado em torno do fogo, apenas aguardando o sábio líder da noite. A chegada de Luké animou a todos, e em particular um dos meninos de 10 anos, Kael, o filho do contador de estórias, correndo para o colo do pai, que o agarrou e sentou no banquinho feito do toco de uma árvore velha:
– Olha só quantos ouvintes temos essa noite! – os cabelos longos de Luké farfalhavam, presos em um rabo de cavalo, com os rastros de vento que passavam pelas frestas da cabana, enquanto o brilho das brasas iluminava seu rosto jovem e sereno – Muito bem então! O que vocês querem ouvir hoje? – Várias vozes se espalharam pela atmosfera e Luké tratou logo de acalma-las.
– Mais baixo pessoal! Vocês sabem o que os outros Hobleus pensam de nossas reuniões e por isso temos que mantê-las com o maior sigilo possível – todos pararam de falar no mesmo instante, exceto Kael, ainda no colo de seu pai:
– Papai, você podia contar a lenda da Tribo... –Entretanto suas palavras foram cortadas pela voz áspera de Baruc, seu irmão mais velho, cujos cabelos dourados se destacavam em meio aos cabelos castanhos dos outros membros da família, mas que o verde do olhar era indistinguível e encontrado em ambos os três; um rapaz com quase 12 anos, o rosto com sardas sutis, mas suficientes para marcar sua expressão de desgosto:
– De novo isso Kael? O papai já contou mil vezes pra gente, e quanto mais ele conta, mais você parece acreditar nessa bobagem... - disse Baruc presunçoso, mas agora foi a vez de Kael interromper o irmão:
– Como você sabe que não é real? Só porque você nunca viu, não quer dizer que não exista. E papai nunca contou a lenda aqui na roda, então...
– Dá um tempo Kai, você não pode acreditar em um conto pra dormir... – os dois irmãos iniciaram uma discussão, mas o pai interviu bem na hora.
– Muito bem, vocês dois podem parar com essa briguinha já. E Baruc, não saia por aí dizendo no que os outros devem acreditar ou não. Todos têm o direito de escolher no que acreditam, ou pelo menos já tiveram. – Luké parou de falar, deixando apenas o som dos estalos de madeira queimando no ar por alguns segundos, parecia enjaulado nos próprios pensamentos. Quando reparou que todos o encaravam, ele então deu um sorriso amargurado e prosseguiu – Muito bem, vejamos, agora todos parecem interessados na tal lenda, então eu vou contar.
Todos ficaram de repente paralisados, preparados para ouvir ao conto. A concentração inundou o ambiente, deixando os ruídos causados pelo vento imperceptíveis. Então Luké posicionou Kael em um banquinho próximo, respirou fundo e começou:
- Há quase 300 anos, a imensa terra onde moramos, foi assolada por uma doença, algo sombrio e mortal, nunca visto antes. Ela tirava o ar dos corpos e fazia com que as pessoas sufocassem até a morte – o contador deu um breve sorriso ao notar o assombro no olhar das crianças, que permaneceram ainda mais interessadas.
'' Essa doença provocou um grande caos no sistema em que todos viviam, então, durante anos de planejamento, as pessoas que lideravam a nação resolveram fazer uma grande mudança, que determinava um novo conjunto de leis e, assim, a doença foi controlada; mas as mudanças não pararam de acontecer. O homem que governava decidiu que apenas sua família era digna de estar no poder, pois eles foram escolhidos por Deus para isso, e para garantia, ele tinha um exército ao seu lado, que prendia qualquer um que contestasse. Entretanto, é claro que alguém se revoltaria; as pessoas daquela época não eram acostumadas a receber ordens com ameaças de morte, e muitos nem acreditavam do Grande Deus.
As crianças se chocaram ao ouvir a última informação, afinal, Deus não era apenas uma crença, mas uma verdade, por isso todas as manhãs eles eram obrigados se ajoelhar nas pedras e rezar por pelo menos 2 horas, para mostrar o quão pequenas eram perante a Ele.
- Senhor, mas como isso é possível? Eles não eram mandados pro Inferno por esse pecado? – perguntou um dos amigos de Kael, tinha um rosto manchado, provavelmente pelo sol, e se chamava Joaquim.
- Os tempos eram outros, criança, mas vamos caminhar com calma, logo chegaremos lá- então Luké prosseguiu. – como eu estava dizendo, as pessoas se revoltaram e organizaram grandes manifestações. O líder mandou o exército e o conflito se tornou uma guerra, rebeldes de um lado, contra soldados de outro.
"É óbvio que os soldados do Governante tinham maior força militar, e armas muito mais potentes, por isso os Rebeldes foram massacrados. Muitos foram mortos, já outros tiveram um destino pior, foram enviados para um experimento do Governo, que vocês conhecem hoje como "Inferno", lá foram torturados e ninguém nunca mais soube de seus corpos".
Todos estavam afundados no silêncio, com uma feição de assombro no rosto, Kael, no entanto, estava com o rosto iluminado e não disfarçava nem um pouco sua ansiedade. Então quebrou o silêncio, no mesmo instante que Baruc revirava os olhos, fazendo uma pergunta, que obviamente já sabia a resposta:
- Esse Inferno é o mesmo que a gente conhece?
- Não filhote – seu pai respondeu sorrindo – era apenas o início do que existe hoje, um teste, mas eles melhoravam a invenção a cada ano, pra que a purificação das almas pudesse ser feita antes mesmo da morte. Investiram em uma grande tecnologia e a partir desse momento tudo que conhecemos hoje foi formado. O líder, então, passou a se chamar Gran-Pastor e os seus apoiadores passaram a fazer parte de um grupo, que vocês conhecem hoje como Matriz.
"Os membros da Matriz, que eram muito ricos, se juntaram em certos pontos da terra e formaram os 5 Côndomes que existem hoje. Nossos ancestrais, muito menos favorecidos, foram obrigados a se aglomerar ao redor dessas fortalezas, nos Purgos, e passaram a se chamar Hobleus, tendo que servir aos ricos com tributo da terra e do trabalho."
– Senhor – Luké foi mais uma vez interrompido, dessa vez por uma garota, que aparentava ter uma idade próxima da de Baruc.- eu não entendo. O que o senhor nos contou até agora são coisas que os Cíceros nos contam nas aulas de "Estruturas Sagradas", mas onde está a lenda nisso tudo?
– Você está prestando muita atenção nas aulas Cora, isso é uma coisa boa –disse Luké, arrancando um breve sorriso d menina – bem, todos precisam entender essa parte da história pra entender a lenda.
"Agora sim. Vocês se lembram dos rebeldes derrotados de que falei? A lenda conta que nem todos foram massacrados, alguns conseguiram fugir. Estes foram para uma região cercada por florestas profundas ao norte da terra santa, um lugar onde poucos conseguem penetrar e os que conseguem, nunca mais são encontrados. Lá os Rebeldes sobreviventes se juntaram a um grupo antigo, que consideramos extinto há muito tempo, os indígenas, e ajudados pela proteção da floresta obscura, juntaram seus conhecimentos e fundaram A Tribo. Esse lugar tinha todo o necessário para se tornar potente e avançou, assim como a Matriz, em tecnologia, durante anos. Como apenas rumores se espalharam pelas regiões e as tentativas de muitos Gran-Pastores em encontrar esse lugar foram um fracasso, ela foi esquecida."
Luké fez uma pausa dramática, para pegar fôlego e continuou, com as crianças paralisadas e quase sem piscar:
– A Lenda conta ainda que a Tribo é um refúgio para os que querem sair da miséria e sofrimento, e que ela sempre estará lá para os que acreditarem em sua existência.
Nesse momento a lenda foi finalizada, e a imaginação das crianças parecia voar para fora de suas mentes, alguns deram sorrisos bobos, outros pareciam ainda chocados com a estória, exceto talvez por Baruc, que não demonstrava nenhuma excitação, pelo contrario, ele estava bocejando, como se a noite tivesse sido uma perda de tempo.
– Senhor- a mesma garota chamou Luké – o senhor acredita nessa lenda? Quero dizer, o senhor acha que a Tribo existe?
– É claro que não existe- Baruc falou antes mesmo de seu pai abrir a boca – não seja estupida Cora, é só uma estória, se existisse mesmo, saberíamos.
– Como você tem tanta certeza Baruc? – indagou o pequeno Joaquim.
– Não tem como você ter certeza Barú – desafiou Cora.
–Se esse lugar existe, por que estamos todos aqui ainda? Por que não vieram nos salvar?– Essa indagação fez alguns se encararem receosos. – Eu só tenho certeza de uma coisa, que é onde estamos agora e pra onde podemos ir daqui a algum tempo, ou você se esqueceu do Dia do Juízo? – retrucou Baruc, seco.
Ao ouvir "Dia Juízo" algumas cabeças, a dos mais novos, levantaram-se curiosas e outras se arrepiaram.
- Eu acredito na Tribo! – Kael afirmou convicto- E um dia eu vou atrás dela!
Muitos outros balançaram a cabeça e aplaudiram baixo em forma de apoio, mas Baruc soltou uma gargalhada desdenhosa:
– É claro que acredita irmãozinho, só espero que você mude de ideia logo, você deve saber que pra chegar na floresta do norte, você tem que passar pelos vazios, e lá ficam as Feras inquisitoras.
– O que são Feras inquisitoras? – um menino, menor e mais novo que Kael e Joaquim, perguntou temeroso.
– São criaturas que a Matriz soltou nos vazios, caso algum Hobleu tentasse fugir de sua obrigação.
As crianças novamente ficaram com uma expressão de assombro no rosto. Luké, no entanto, parecia se entreter com as discussões das crianças.
– Mas, isso também é uma lenda Baruc – retrucou Cora.
– É, mas é bem mais provável que isso exista, do que essa tal Tribo – respondeu Baruc com sua risadinha irônica.
– Não é não Baruc, você que é um chatão...- Kael atacou o irmão e logo uma nova discussão começou, por conta da divisão de opiniões, mas dessa vez Luké se viu obrigado a intervir.
– Ei, parem todos vocês. Kael e Baruc, já avisei pra vocês pararem de implicar um com outro.
– Mas pai... – tentou argumentar Kael.
– Não quero mais discussões! Muito bem, acho que por hoje já foi o suficiente. Vamos pra casa, porque amanhã todos tem que acordar cedo. Não se esqueçam: tudo o que falamos aqui.
– Fica aqui – Finalizaram todos uníssonos.
– Certo! Boa noite pessoal, que Deus os guie. E uma última coisinha, eu não posso afirmar se a lenda que lhes contei é verdadeira, mas peço que vocês tenham uma única coisa: esperança.
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A Tribo
Random"Ordem e fé." "Kael sentou na sombra daquela árvore, se apoiando na mochila de seu pai, ele era agora um grão de areia no imenso deserto vermelho...Com seus olhos marejados olhou pra trás, o Purgo não era mais visível, e era melhor assim, não poderi...