[TW: Assuntos sensíveis como suicídio]
— Silencio. Silencio absoluto. Era tudo que tinha ali naquele momento, além de um grilo irritante que eu definitivamente pisaria em cima se o visse, porém eu o ignorava e com meus olhos fechados era como se fossem pássaros cantando e voando perto de mim, será que era dessa maneira que éramos recebidos no paraíso? Pássaros brancos voando ao nosso redor enquanto subimos em um elevador que nos leva até Deus?
Por um momento até consigo me esquecer que pecadores como eu não vão para o paraíso e sim para o inferno. Será que é como naquelas séries como The Good Place, um trem aparece e nos leva calmamente até o infer... — Oi. — Meus pensamentos se interrompem ao ouvir uma voz atrás de mim, abrindo meus olhos lentamente, olhando para o rio escuro em minha frente, iluminado apenas pelas luzes do poste atrás de mim, mantendo meu olhar focado na água, quase me esquecendo que tinha alguém atrás de mim até ele falar novamente. — Olha...tem como você descer daí? Não é muito seguro ficar aí em cima, eu já vi alguns filmes que isso nunca dá muito certo... — Ele fala com uma voz trêmula, eu conseguia perceber isso sem mesmo olhar para ele. — Eu sei que você pode me ouvir, estamos literalmente um do lado do outro. — Ele fala novamente, qual é a dele com frases? Ele não se cala um minuto. Viro meu rosto para o garoto, batendo na minha testa internamente por não ter reconhecido a voz antes.
O cabelo preto bagunçado pelo chapéu da lanchonete do Johnny Burguers, o uniforme cheirando a fritura, 1,89 de altura, Harry McKinley, 3º ano, fazemos química avançada juntos, o que ele estava fazendo aqui? — O que você tá fazendo aqui? — Pergunto quase ao mesmo tempo que penso, me deixando até confusa com a repetição das frases na minha cabeça e em seguida na minha boca. — Eu que deveria perguntar o que você está fazendo aí, certo? Não é a coisa mais segura ficar em cima de uma ponte as uma da manhã, se você cair daí ninguém pode te ajudar. — Ele responde quase que imediatamente a minha pergunta, me fazendo franzir minha testa com a audácia dele me explicar, isso era bem óbvio. — Obrigada Sherlock por compartilhar sua descoberta comigo, eu não fazia ideia que ninguém poderia me ajudar...talvez eu não queira que me ajudem. — Meu tom de voz começa a diminuir, e se ali não tivesse um silencio, eu duvidaria que ele conseguiria me ouvir naquele momento.
Foco meu olhar no rio, porém por no máximo cinco segundos já que o som dele subindo na ponte, ficando ao meu lado toma toda minha atenção, sentindo meu coração acelerar por alguns segundos enquanto ele tentava se equilibrar na ponte. — Para com isso...é sério, desce agora. — Falo, ficando um pouco assustada dele cair, não por preocupação, mas porque aquele era meu momento, ele não podia atrapalhar caindo sem querer no rio. — Já que você não desce, eu vou ter que me juntar a você aqui em cima. — Ignoro o que ele fala com uma expressão um pouco confusa do porquê dele estar fazendo isso, voltando meu olhar para a água, olhando para o reflexo da luz do poste nela, apenas com o silêncio e o grilo de anteriormente, mas obviamente não por muito tempo. — É por causa das fotos, né? Você não pode querer se jogar daqui por causa que um babaca mandou aquilo em um grupo qualquer no Instagram, daqui há uma semana ninguém vai se lembrar... — Sinto meu coração palpitar tão forte que era quase como se fosse pular fora da minha boca e cair no rio assim que ele começa a falar sobre aquilo, sentindo minhas pernas ficarem tão trêmulas quanto a voz dele quando chegou aqui. — Cala boca...cala a boca, você não sabe como é. — Respondo com uma rigidez na voz, ainda sentindo minha perna trêmula, mas dessa vez sem saber se era por causa da situação ou do frio.
— É, eu não sei...mas eu sei como as pessoas se esquecem disso facilmente se você decidir esquecer também...olha, mês passado o James St. Jones do 2º ano disse pra todo mundo que a Babara Linnoys do 1º ano bateu uma pra ele na sessão de enciclopédias da biblioteca, todo mundo falou por uma semana e boom, agora ninguém se lembra mais, viu?! — Ouço ele falar aquilo em silêncio, por que ele tinha que ser tão intrometido? — Não funciona assim se você é filha do pastor de uma cidade como essa...eu tenho certeza que a Barbara não teve pessoas dizendo que a alma dela já era propriedade de Satã e que ela era uma pecadora que já estava com o destino selado no inferno ao lado de...você sabe quem. — Eu não queria ter que repetir aquele nome. — E pelo visto nem todo mundo esqueceu...as pessoas não esquecem, elas apenas não comentam mais, porém todas elas se lembram, sempre vão se lembrar. — Dou um suspiro após falar, pensando em como minha vida estava acabada, e por culpa minha de ter sido idiota o suficiente por acreditar no primeiro garoto que me disse que eu era mais que a filha tímida do pastor.
— Foda-se essas pessoas, para mim essas merdas de inferno e céu nem existem, são só invenções para que pessoas como você se sintam culpadas por fazer coisas que não são conservadoras. — Ouço um pouco assustada pelo o modo como ele fala, até um pouco ofendida, apesar de tudo eu ainda tinha minha fé, era o que me fez aguentar toda essa semana até eu não conseguir mais, até hoje. — É claro que existe...você deve ser apenas uma daquelas pessoas que acha que vai ficar descolado se usar essas frases prontas de uma conta qualquer de algum ateu do Twitter. — Se eu estivesse olhando para ele agora, eu tenho certeza que ele estaria com uma feição de ofensa como eu sentia que estava agora após eu terminar de falar.
— Olha Gracie, eu... — Dou um suspiro tão alto que acabo interrompendo-o de falar, tomando seu momento de fala logo depois. — Eu não sei o que você está fazendo aqui, eu não sei porque parou aqui, a gente nunca se falou em todos esses anos estudando no mesmo colégio, então por que está aqui? Olha, você não vai fazer uma boa ação ou mudar o mundo me impedindo de sair daqui...minha alma já está perdida de qualquer maneira, suicídio é pecado, eu vou para o inferno de qualquer jeito, e como você não acredita nessas coisas você não precisa ficar aqui perdendo seu tempo tentando me ajudar para garantir seu lugarzinho no céu, então por favor vai embora... — Sinto minha voz começar a quebrar no final, sentindo a água descer pelo meu rosto e seu gosto salgado assim que elas chegam até meu lábio superior; eu até penso em limpar minhas lágrimas mas desisto após eu sentir mais saírem, eu novamente estava sendo fraca, até no meu momento mais humilhante, em que eu achava que não era possível ser mais fraca que isso, eu conseguia.
— O que...? Eu não estou querendo guardar um lugar no céu ou fazer uma boa ação...eu só quero tentar impedir você de fazer algo que não vai poder voltar atrás por causa da ação de um babaca qualquer...olha, aquilo não foi culpa sua...e eu sei que fazendo isso eu não vou mudar o mundo, não inteiro, mas pelo menos posso tentar mudar o de algumas pessoas...o seu, de seus pais, da sua irmã...o meu. Eu sei que não nos falamos mais de 10 palavras nesses últimos 10 anos frequentando o mesmo colégio mas você é quem me passa as respostas na aula de química avançada, não pode ir embora assim...e eu posso não acreditar em Deus, mas eu tenho certeza que ele não iria querer que você fosse para ele, porque eu sei que você iria, e pelo o erro de outra pessoa. — Respiro fundo continuando em silêncio ouvindo-o falar, eu nem mesmo conseguia responder ele, me sentia envergonhada demais para isso, eu só queria que aquilo acabasse.
Fecho meus olhos novamente, da mesma maneira que estava antes dele chegar, mas o barulho dele descendo da ponte e dizendo "pronto" depois de alguns segundos me faz abrir os olhos e olhar para ele, pensando que ele iria embora, mas ele estava com seu celular nas mãos. — Pronto, eu acabei de postar uma foto do meu pinto no meu story do Instagram para...mil duzentas e quatro pessoas verem...eu realmente fiz isso. — Fico um pouco incrédula e sem acreditar muito ouvindo ele dizer isso, até ele virar o celular para mim e me mostrar a foto postada, virando meu rosto depois de alguns segundos, eu não devia olhar para aquilo. — Não pode me deixar passar por isso sozinho, por favor... — Ouço ele falando, virando meu rosto para ele e o vendo com sua mão estendida para mim. Fico alguns segundos encarando sua mão, sem saber muito o que fazer, mas segurando ela e descendo de cima da ponte, limpando meu rosto ao lado dele. — Você é totalmente doido...eu te vejo amanhã na escola. — Falo com a voz um pouco fragilizada, tentando dar um sorriso para ele, mesmo que o menor de todos, correndo até minha bicicleta que estava encostada em um dos postes, subindo nela e pedalando de volta para casa, mas olhando para trás pelo menos uma duas vezes antes de perder ele de vista.
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Desafio dos 30 dias de escrita
General FictionCompilado de 30 histórias diferentes, cada uma com o tema do dia respectivo. [TW de assuntos sensíveis como suicídio e auto mutilação.]