Conto I

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No princípio havia trevas...

E nada mais importava para os deuses, que guerreavam através da escuridão eterna. Sedentos por mais e mais poder, eles dizimavam uns aos outros sem qualquer piedade – pois tal virtude elevada ainda não existia. 

Assumindo formas terríveis de terror e de puro desespero, garras, dentes e chifres perfurantes faiscavam como o choque do metal em meio à noite eterna.

Houve, no entanto, um deus, que cansado das batalhas intermináveis, inominável por si só e de tremendo poder, deitou-se nas bordas da escuridão primal e dormiu seu sono perturbado — repleto de coisas serpenteantes as quais cortavam as trevas como pequenas navalhas. 

Tal visão atormentou o deus, que não entendeu como sonhara algo tão terrível a ponto de despertá-lo antes de sua hora derradeira.

Quando ele acordou, seus olhos viram e se alegraram e se entristeceram, então lembrou da força que nascera ao seu lado, e do seio de sua mãe e do leite maldito que o alimentara no berço carnal que o envolveu naqueles sopros de eras tão distantes. 

A chama — uma flecha de luz sufocada pela densa escuridão que a rodeava —, lutava como um feroz leão ferido, porque bem se sabe que uma fera ferida é tão letal quanto um animal são. A coisa fulgurante, sem nome e sem propósito, exceto o de perturbá-lo, estremeceu o deus, que descobriu o amor por algo tão pequeno. Assim, aquele deus se moveue em sua majestade terrível, e com a mão tocou a pequena chama, que se partiu em milhares de milhares, espalhando-se como um tapete de minúsculos pontos brancos por todas as terras escuras. 

E para cada pequena chama que dominava as trevas como um exército, os demais deuses cessaram por instantes as próprias guerras, surpreendidos pelo brilho de tal coisa sem nome e, por isso, logo trataram de chamá-las estrelas

Na escuridão então houve a primeira paz, breve. 

Os amigos do deus vieram saudá-lo por tão grandiosa criação. Um rei distante presenteou-lhe com um martelo e uma forja, a qual queimaria com a intensidade de noventa e nove sóis quando estes fossem criados. Os amigos estavam cheios de boas mensagens para o deus, que se viu favorecido por ter aquele privilégio, e assim sua mente pensou no que ele poderia fazer para agradar mais seus amigos. 

As trevas então se dividiram. 

Uma terrível senhora do desespero, faminta pelo sangue de seus irmãos e pelo choro das crianças, vendo-se sem o seu alimento, notou que a quietude da guerra era a causa maior de sua falência. 

E envolvendo-se com um manto de loucura, saiu a visitar velhas e novas rixas, quando, enfim, conseguiu devorá-las, percebeu que o estômago ainda estava vazio, e ela, debruçada sob um sentimento de incompletude. 

A senhora então convocou seus anseios mais íntimos, buscando em si o motivo daquilo que a atormentava, e notou, então, que o chão que seus pés tocavam estava inundado de pequenas luzes como espinhos que feriam sua carne profana. Ela gritou de ódio. Da audição de tão terrível maldição, criaram-se os primeiros diabos que carregam as crianças de sua cama no meio da noite. A deusa desenhou um plano terrível e as trevas retornaram para a guerra. 

O deus que sonhara com as estrelas muito se abateu quando soube que suas pequenas chamas estavam sendo engolidas pela terrível senhora. 

O antigo furor e a memória de sua força retornaram como relâmpagos que cortam os céus, assim, o deus se pôs a marchar contra sua adversária, mas encontrou resistência. 

O exército inimigo campeava ao redor de um alto monte sobre o qual se construíra uma fortaleza-torre intransponível e silenciosa, pois sabemos que a senhora era uma deusa surda e de temperamento agudo para a matança. Ela, vendo que seus pequenos diabos lutavam contra o deus, lançou setas envenenadas — que o feriram nas coxas. 

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