Você já viu um troll debaixo da velha árvore?
Debaixo de uma velha árvore morava um troll ranzinza, que passava os dias a vigiar os viajantes da velha estrada do rei, que não era muito bem do rei, mas do Duque que morreu cego e doente, não necessariamente nessa ordem.
Ele tinha uma filha. A garota não era fácil, gostava de levantar a barra do vestido para os servos, e vez ou outra o pai ouvia falar nos sussurros que a menina era uma bezerra como a mãe.
Várias vezes irado de avermelhar as orelhas, o duque mandava cortar bolas e línguas, e por isso a fazenda era conhecida como a Fortaleza do Lâmina Cega.
O Lâmina Cega era o nome do carrasco, um sujeito de cabeça a menos. Dele se conta que a mãe, no dia do parto, estava a fugir da guarda da cidade, quando, apanhada roubando, subiu no primeiro cavalo que viu e saiu a galopar pelas ruas.
O problema, no entanto, e para a infelicidade do Lâmina Cega, é que ele nasceu no trote mais brusco do cavalo. A situação não podia ser pior para a mãe, que sentiu as contrações e a água do útero escorrer entre as pernas, depois uma pressão forte nos ossos das ancas, e então uma coisinha vermelha e ensanguentada foi cuspida por sua boceta.
O Lâmina Cega caiu da mãe. E ali pelo chão mesmo ficou, escapando por pouco do pisoteio dos cavalos que perseguiam a mulher. No nascimento, caiu de jeito no chão e achatou a moleira.
Desde lá não fala palavra certa e nem enxergava muito bem. Cresceu nas ruas da cidade, até o dia em que o duque o achou vagando pela fazenda com metade das roupas cobrindo um longo pau e comendo dos farelos dos porcos.
Sentimental como ele só, o duque o acolheu, percebendo, dias depois, que o Lâmina Cega tinha força para cortar troncos com facilidade.
Foi na Primavera, quando ladrões saem de suas cavernas e resolvem mijar por todo canto, que o duque estava voltando da cidade com os novos vestidos da esposa e da filha que um grupo de gente feia e violenta parou a carruagem dele.
Do lado de fora estava o Lâmina e mais dois guarda-costas. Os bandidos eram em cinco, e um deles parecia muito com um gnomo de olhos vermelhos. Os guardas do duque receberam duas flechas pelas costas, e logo tombaram, o Lâmina viu tudo e começou a gritar, pegou um machado cego e balançou numa onda de espanto sem igual.
As sombras, que para ele era o que via, foram uma a uma sendo divididas no meio até que, das cinco, nada restasse, além de bandas de carne imóveis.
O duque saiu da carruagem e encontrou o Lâmina todo sujo de sangue e terra, viu os guarda-costas com as flechas nas costas, e viu também o resto dos bandidos, com as tripas lavando o chão de terra batida.
E naquele fatídico dia, o menino que caiu do cavalo foi promovido a carrasco do duque. Não se sabe bem porquê carrasco, mas assim foi feito, e não houve questionamentos.
Ao voltarem para a fazenda, passou-se uma semana até que o duque ouviu boatos sobre a filha. Dessa vez, brincando com o filho de um fidalgote de estirpe menor.
O duque chamou seus empregados. Cada um ficaria sem uma orelha por causa dos boatos que espalharam. Então caminharam às doze horas, quando o sol brilha no ponto mais alto do céu, e como deve ser toda execução conforme as leis do rei. Os homens chegaram à pedra da justiça, coberta de cogumelos de formato sinistro do tamanho da cabeça de homem, no alto de uma colina.
Ele, o duque, resolveu falar algumas palavras diante dos dois empregados, que tremiam com a ideia de perder uma das orelhas. A voz do duque era mansa, de um tom sem graça para toda vida. Quando terminou de falar, os servos começaram uma gritaria que se ouvia até mesmo na cidade.

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MitoDark
Short StoryMitoDark - série de contos de natureza mitológica. Cada narrativa traz em si uma releitura de elementos da literatura fantástica dark e folclórica. Contém assunto sensível: violência, sexo e profanação de símbolos religiosos