Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.
Na véspera do início do século XIX, um metódico e calmo cavalheiro finalmente encontra o que lhe faltava.
Agora, apaixonado por esta bela dama, se tornará um com ela, tendo de se adaptar.
Uma valsa no final da noite, e é só o vento que professará o destino dos dois.
Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.
Era a noite da virada de século e eu caminhava pelo parque. Todos comemoravam, mas optara por um trajeto sereno em um parque calmo. A brisa era arrebatadoramente fresca. A luz do luar repercutia de forma cintilante pela extensão do lago artificial. Pelo caminho de pedras, andei até um dos bancos e sentei-me sobre, observando o movimento fleumático da água. A Lua cheia, pálida como a neve — que há muito não descia dos céus —, iluminava as pedrinhas brancas do fundo do lago, dando um brilho ainda mais majestoso. Nenhuma nuvem cobria sua magnificência. Os pássaros estavam quietos. Era a noite perfeita, mas mesmo assim, não me sentia completo. Nunca me senti.
Ao longe, acovardando-me com um som que não deveria pertencer ao cenário, um choro quebrou o silêncio — antes preenchido apenas pelo barulho de peixes nadando. Olhei rápido para trás e, num degrau de uma pequena escadaria de pedras, a vi. Como um animal ferido, rastejava e chorava. Seu sangue formava um caminho — caminho este ainda mais encantador qual o da própria luz do luar trilhava ao rumar à Terra. Seu braço esquerdo estava dependurado do corpo, e nada de pernas. Onde antes existiam braços, soltava-se litros do líquido rubro. A carne era de primeira — ah! Eu salivava como um coiote. O úmero cortado rente ao começo do ombro, no braço esquerdo, era de um branco ainda mais sólido e puro que o da Lua. Brilhava.
Arrastou-se escada abaixo, chorando pela contristadora dor que cada degrau engendrava sobre seu corpo. Veio em minha direção, ainda rastejando. Puxou-me pela calça e, olhando fundo em meus olhos, chorou. Não pude conter um sorriso de genuína alegria. Nunca vi tão bela. A ergui pela cintura e a pus sobre meu colo. Acariciei sua cabeça e dei beijos nos machucados, para sarar. Imagine minha surpresa quando adormeceu ali mesmo. Levantei-me do banco, e a segurei nos braços enquanto, do chão, recolhi seus ossos. Ela precisava de mim para se sentir completa.
Já dentro do lar, a sós, a pus sobre a mesa de jantar. Revirei algumas caixas e reuni agulhas e linhas. Com precisos movimentos, costurei os braços de volta ao corpo. Pensei que ela gritaria, mas mesmo acordada não fez som algum. Sua mente estava oca como um tambor e, enquanto caminhava a procura de seus cabelos, encontrei os pensamentos dela espalhados pelo chão. Como cola, grudaram-se aos meus sapatos. Devem ter efundido de suas orelhas enquanto eu a carregava. Pus ela sentada numa cadeira e, acomodado logo atrás, tentei recolocar seus fios no couro cabeludo. Apenas horas depois fui finalizar o serviço, um precioso tempo gasto com uma outra preciosidade. Pus-me sobre meus pés — ou seriam os dela? — e dei uma boa olhada. Algo ali estava errado. Eu a remontei, de fato, mas as peças não estavam nos lugares apropriados. Os braços pendiam, anexados à cabeça. Não achei que ela pareceria tão estranha tendo apenas alguns de seus membros rearranjados. Eu só queria consertá-la, para que ficasse feliz, mas acabei por juntá-la de forma errada. Algo ali não estava certo.
Arranquei os braços e os cabelos, para recomeçar a obra. Entretanto, quando terminei tudo, ainda haviam pedaços sobrando. Retornei cada pedaço, mas mantive para mim mesmo um restinho. Cansado, ao final, usei de suas unhas para coçar a marca da mordida que, com seus dentes — ou seriam os meus? —, fez em meu braço.
Mais algumas horas se passaram. Eu consertei seus quebrados sonhos e sorriso, pus todas suas melhores partes numa pequena pilha ao lado da lareira. Nunca gostei muito do meu cenho, então o pendurei nela de cabeça para baixo. Tinha achado adorável e belo o seu narizinho, mas tenho certeza que ele serviria melhor em mim, então amputei meu próprio e o substitui. O espelho confirmou meu pensamento. Ao me afastar da lareira, percebi como seu amor era frio e desonesto, então enchi seus ouvidos com gentis palavras.
Mas, novamente, algo ali estava errado. Nossa união, tão literal, transmutou-se inevitavelmente em loucura. Nunca pensei que pudesse parecer ainda mais estranha, mas com apenas algumas partes arranjadas em novas posições, sua aparência era devastadora aos meus pobres olhos, então os arranquei. Só queria torná-la inteira novamente.
Finalmente com tudo terminado, saímos para aproveitar a virada do século. Enquanto dançávamos na enluarada noite, ela segurava sua mão com a minha mão direita. Nós trocamos mais do que palavras, como deve perceber. Posso dizer que ela é parte de mim e, eu, parte dela, como também percebe. Ela tem a minha boca e a veste com elegância. Enquanto o ritmo musical do vento ficava mais romântico, pus suas mãos sobre minha cintura — ou seria o contrário? Ah! Eu esqueci. Eu fico com ela, mas não por escolha, é claro, enquanto seguro seu coração, e ela possui minha voz. Quando finalmente nos beijamos, foi algo extremamente bizarro, afinal não tínhamos sequer certeza de quem era quem.
Ali, algo ainda era recôndito. Mas, enquanto o vento da paixão desesperadora se acalmava, percebi que era tudo loucura — loucura esta que ludibriou meu pensamento. Ela era perfeita e, parte dessa perfeição era tudo que, nela, havia de imperfeito. Eu só não tinha conseguido notar tudo antes. Mas agora que não enxergava com meus olhos superficiais, pude ver tudo com clareza através da janela de minha alma.
O vento da paixão então cessou-se e, com toda graciosidade, voltou. Mas não como era antes. Agora, um vento de amor. Ao longe, fogos de artifício comemoravam nossa valsa de desmembrados.
Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.