settimo.

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⚠️ Atenção! Este capítulo contém violência física/agressão física.





MARK


"Vejo noites tranquilas derramadas sobre gelo e Tanqueray"



Quando vi o sol desaparecer guardei o maço, que agora tinha apenas uns três cigarros restantes, me levantei e limpei as roupas. Olhei para o outro garoto, ele me pareceu triste mas se levantou e fomos andando lado a lado dessa vez.

— Até outro dia.

— Te vejo por ai. — Donghyuck não se mexeu.


Pretendia esperar até que ele saísse do pier para ir embora também, mas senti o celular vibrando e vi que meu pai me ligava. Subi a ladeira meio que correndo e atendi, achei estranho ter recebido uma ligação, normalmente nos falamos por mensagens.

— Alô? Pai?

— Mark escuta com atenção, a vovó não está bem, então vou levar ela no hospital ok? Acho que não vou voltar para casa hoje. — desliguei.

Eu sabia que era uma mentira, a vovó morreu a dois anos, ele só não me contou. O vício em drogas dele piora a cada dia e eu não posso fazer nada, já perdi a conta de quantas vezes fui a delegacia ou recebi ligações de traficantes.

Não o culpo pois sei que parte desse vício, desse sofrimento, é culpa minha, é tudo por causa daquela vadia. Minha relação com minha mãe não é boa, melhor dizer inexistente já que ela nunca sequer tentou ser o que todos chamam de mãe.

Ele a amava mais do que a si mesmo e eu sabia que isso não era bom, mas também tinha consciência de que eu não queria mais vê-la. Todos acham que sou um bad boy por causa da minha aparência, das minha cicatrizes.

Meu pai é o único que me restou e sei que vou perdê-lo se as coisas continuarem assim. Tenho mais medo de ver ele voltar para ela do que morrer em uma vala qualquer, não quero que ele saiba o que eu passei por causa daquela mulher, porque isso vai acabar com o que resto do homem que eu conheço como pai.

Ela me batia, para não bater nele.

Sei que se eu não falasse nada ela descontaria tudo nele, pedi para ela fazer isso. Antes de as coisas ficarem horríveis meu pai era a pessoa que mais se importava comigo, não podia ver ele sofrer, ainda mais nas mãos da mulher que ama. Era uma relação abusiva, mas ele não sabia.

Desisti de jogar basquete pois ela pisava em minhas mão depois que meu pai perdia o emprego de novo. Não ligava as luzes e não me olhava no espelho, mas enquanto tudo entre os dois estivesse bem eu fingia estar bem.

Então chegou o dia no qual eu poderia ter morrido, seria mais fácil do que viver assim. Ela foi embora, mas era obvio que não sairia sem fazer um show. Disse que era minha culpa, que eu não saia nunca, que minhas notas eram horríveis e eu não tinha nada de bom a oferecer.

Cuspiu essas palavras na cara de meu pai enquanto eu escutava tudo pelas paredes finas do quarto, quando ouvi a porta bater pensei que tudo ficaria bem, mas por alguns minutos... ficou pior.

Ele entrou em meu quarto, com aqueles óculos de leitura e a camisa de flanela gasta. Com o cinto em mãos e uma expressão cheia de ódio fui chutado até cair no chão e depois não senti mais nada, apaguei completamente, o resto são borrões.

Coisas como as luzes vermelhas, a maca, o choro dele e os rostos sem expressões fazem parte da vasta coletânea das minhas piores memórias. Acordei em uma cama de hospital, não havia ninguém lá comigo, pensei que tinha sido abandonado.

Quando vi aquela mesma camisa que meu pais usava em um rosto que não conseguia enxergar se aproximar de mim eu surtei. Esperneei e tentei sair correndo, mas fui puxado pelo tubo que estava em meu braço, uma mulher com uniforme de enfermeira e também sem rosto injetou algo em mim e voltei a dormir.

Prosopagnosia.

Sou incapaz de ver rostos, inclusive o meu. Já fazem sete anos, não é como se eu quisesse ver o rosto dos outros de novo, acabou se tornando confortável. Poucas pessoas sabem da minha condição, apenas Renjun, Jeno, Jisung, a diretora do colégio e alguns professores, e claro, meu pai.

Quando contei para os meus amigos pedi para que sempre me avisassem quando mudarem a cor dos cabelos, decorei muitos detalhes de cada um para reconhece-los. Não gosto de conhecer pessoas novas, pois várias delas já me machucaram.

Vivo em um lugar afastado do resto da cidade, uma casa pequena que é mais do que suficiente para duas pessoas, apesar de passar quase todos os dias sozinho. Sempre volto da escola a pé já que não temos dinheiro para um carro.

Não somos pobres, mas meu pai não trabalha, vivemos com o dinheiro dos meus trabalhos de meio período e a aposentadoria da vovó. É confortável, quase calmo, mas ainda sim mil vezes melhor do que viver com ela.

Quando entro em casa vou para o quarto e jogo a mochila em qualquer canto, pego uma muda de roupas e vou tomar um banho rápido. Estendo a toalha, coloco as roupas sujas para lavar e depois lavo a louça e arrumo a bagunça pelo resto da casa.

Volto para o quarto depois de terminar tudo e pego meus cadernos, não vou dormir mesmo sendo tarde, faço meus trabalhos e atividades — deixo as notas em cima como se quisesse provar algo para aquela mulher — enquanto espero a ligação da delegacia ou de um bar qualquer falando que meu pai está atirado por lá.

Uma noite igual a todas as outras.

[...]

Tanqueray: Tanqueray é um Gin, uma bebida alcoólica.

Prosopagnosia: Desordem rara da percepção da face, na qual a habilidade de reconhecer rostos está danificada. É uma doença incomum, apenas 2% da população mundial possui. Comumente desenvolvida por pessoas que sofreram uma lesão cerebral, como um AVC, mas também podem ser causadas por traumas. A condição foi descoberta em 1944 em um front de batalha durante a Segunda Guerra Mundial.

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