O METAMORFOSEANTE

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Se eu pudesse definir minha existência em uma única palavra, seria: Mutável. Ou talvez uma palavra mais estranha, porém com um mesmo significado, metamórfica. Não lembro exatamente quando percebi minha consciência, sei que faz muitos anos, talvez séculos. Quando me dei conta, era um conjunto de sinapses sem forma ou corpo, vagando pelo cosmos. Lembro bem que havia alguém comigo, uma voz, me disse coisas importantes das quais esqueci, mas sinto que foi aquela voz que me criou, e o motivo de eu não possuir forma, é graças à ela.

Na verdade, devo deixar algo claro, não é que não possuo forma, eu tomo forma. Eu posso ser o que quiser, só não quando eu quero. Sou uma entidade capaz de trocar de forma aleatoriamente. Eu vivo muitos de meus dias transitando entre corpos e objetos, sentindo o que sentem, experimentando sensações, observando suas realidades dos seus pontos de vista. Pode parecer perturbador, desconfortável ou no mínimo estranho, mas faz tão parte de minha realidade, quanto "pensar" faz para vocês. Sem ter um bom motivo, sinto vontade de compartilhar um dos meus dias e sua singularidades. Hoje, nesse momento, sou uma pedra. Mais especificamente, sou um cascalho, acho que estou na calçada, a rua é movimentada e estou com sono. A calçada é muito quente à essa hora do dia.

Mas prefiro me focar em um único dia, desde o começo. Ontem mesmo, foi um dia cheio de experiências interessantes. Assim que despertei, eu era uma simples e suja, lata de lixo.

Dentro de mim era úmido. Um amontoado de coisas plásticas e orgânicas foram despejadas de forma aleatória, com certeza eu não era uma lixeira de recicláveis. Moscas me rondavam e entravam dentro de mim, sentia suas patinhas tocando o metal meu metal frio, seus zumbidos me incomodavam. Podia sentir o cheiro de comida podre, os restos de cachorro-quente eram os piores, os canudos incomodavam. Então mudei, agora sou algo bem menos sufocante, sou algo belo e livre, virei um pássaro, fazia tempo que não virava um. No galho de uma árvore, com um terreno à minha volta, eu alcei voo, aproveitando cada segundo do vento batendo nas penas. Dei um rasante numa casa e virei um aparelho de TV. Ser um aparelho desses é bem desconfortável para mim, não gosto das pessoas me fitando, e emitir sons se torna estressante com o tempo. A pior parte é claro, são as pessoas me batendo, problemas com o sinal eu acho. Igual mudar de canal, num segundo eu já era outra coisa. Sou algo fino e leve, por fora sinto uma dureza, alguém me pega na mão e me folheia, sou um livro, percebo. A pior parte de ser um livro, é a sensação de ser tocado por diversas mãos, sem saber por onde essas mãos passaram. Admito que na verdade, retiro o que disse acima, de fato algumas experiências são desconfortáveis. Mas talvez seja apenas algo pessoal.

Na décima terceira mão eu mudei. Sou um besouro, ergui minhas asas e balancei minhas seis pernas. Senti o peso do meu corpo, o exoesqueleto era algo difícil de me acostumar. Balancei as anteninhas explorei o lugar, estava no chão e senti um tremor percorrer a terra, mas antes que pudesse voar, algo muito pesado me esmagou, não foi a primeira vez que eu morri. Já havia morrido diversas vezes como inseto, a maioria era um simples pisam, como mosquito, experimentei ser eletrocutado.

Acordei, mais uma vez, sou outra coisa. Tento me mexer, não consigo, percebo estar preso ao chão, são minhas raízes. A sensação de ser uma árvore é muito agradável, é letárgico, o tempo passa devagar. Por ser um flamboyant, minhas flores vermelhas chamam a atenção de animais, a madeira faz cócegas conforme eles passeiam por mim. Sinto a chuva nas minhas folhas, sugo água pelas raízes e sinto essa mesma água evaporar de mim. Acompanho a troca de estação da floresta ao meu redor. As minhas folhas murcharam mais rápido do que imaginei.

Foi então que virei algo que até onde me lembro, nunca havia me tornado. De início foi como se eu me esticasse, vários quilômetros. Senti asfalto quente, os pneus se arrastando, milhões deles, alguns se batiam, se chocavam. Os passos de também milhões de seres humanos, percorrendo toda a minha extensão; me cavando, cutucando, rasgando e poluindo. Senti meus rios sujarem e não foi muito agradável. O meu ar estragou e minha vista embaçou graças aos prédios. Eu me tornei uma cidade, e como uma, senti e vi tudo o que se passou ali. Sentia desde os postes de luz, até os terrenos baldios. A vibração das casas, os tiros, os gritos, as mortes. Eu senti pela primeira vez os humanos deste planeta como nunca havia sentido. Durante o restante do dia eu fui essa cidade.

E a partir desta notável experiência, me questionei ainda mais de meu propósito. Seria eu uma forma de consciência criada para catalogar todas as formas de vidas e criações deste planeta? Por isso sou obrigado a mudar de forma, e viver de fato como esses seres e objetos? Não sei...

Sei que agora eu sou um tardígrado. Faz muito tempo que não me torno algo microscópico, isso me anima. Se me derem licença, vou explorar um pouco.

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