PRÓLOGO

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A caminhada do ponto de ônibus até meu prédio sempre me faz questionar minhas estúpidas escolhas de vida e o motivo de eu ter decidido gastar dinheiro com um apartamento ao invés de um carro. Não temia que algo acontecesse, com a presença firme e constante da arma sob o casaco grosso roçando meu quadril ao caminhar, eu só odiava a neve com todas as minhas forças. Se você gosta de neve ou sonha um dia saltitar sobre essa imensidão branca, sinto muito estragar tudo, mas neve é a porcaria mais chata que a natureza poderia inventar. Admito que a visão dos flocos brancos descendo pelo céu realmente é linda, até que eles se acumulem na rua e se tornem um problema com o qual você precisa lidar, seja retirando a neve ou levando 20 minutos para atravessá-la em um trecho que normalmente levaria 5. Preciso falar também que ela derrete, e vira uma armadilha mortal e invisível, capaz de derrubar até o mais treinado soldado. Esse foi meu caso hoje. A dor constante no lado esquerdo do meu corpo parecia aumentar a cada passo que me aproximava de casa, minha coxa provavelmente roxa sonhando com o alívio de um banho morno e uma pomada. Quando finalmente vi a portaria do prédio à distância, fui dominada por um ânimo repentino, que me deu energia para caminhar um pouco mais rápido, o que provavelmente pareceu que eu estava trotando.

Com o cansaço e a dor latentes prestes a explodir, mal digitei a senha de casa e já comecei a retirar as camadas de roupa, abandonando-as pelo caminho. A briga com os coturnos levou uma eternidade mas acabou sendo vencida, o sobretudo preto os acompanhando no chão. Na luta com a gandola já estava tão desesperada que quase cogitei entrar na banheira com toda a farda. Porém já estava no terceiro botão quando ouvi um tilintar de talheres vindo da cozinha. Continuei parada em frente a porta e tentei apurar a audição, e ouvi novamente o mesmo barulho. Silenciosamente dei passos cuidadosos sobre o piso de madeira, tentando controlar meu peso para evitar qualquer barulho. Com as costas apoiadas na parede da sala, levantei a gandola lentamente, puxando o revólver do coldre devagar. Quando enfim estava posicionada, com as mãos na altura da cabeça, inspirei longamente antes de pular de frente para a ilha no centro da cozinha.

- Mãos ao alto! - meu olhar estava turvo com a adrenalina, o sangue corria rápido para minha cabeça, minhas mãos sólidas na arma, o dedo colado ao gatilho. Os poucos segundos que levaram para que minha visão clareasse pareceram horas, e fui despertada do meu transe com um grito ensurdecedor, que não sei dizer se saiu da minha boca ou da dele.

- Abaixa isso, sua maluca! Anda logo! - ligeiramente acionei a trava da pistola, devolvendo-a para o coldre debaixo da gandola. Antes que ele continuasse a protestar, busquei o objeto mais próximo de mim e atirei-o nele, sem considerar muito o que era. Pelo estilhaçar, deve ter sido um porta-retratos. - O que é isso? Você jogou um porta-retratos em mim?

- Da próxima vez juro que vou atirar no seu joelho. Que ideia brilhante é essa, de invadir a casa de uma policial?

- Eu não invadi, eu sei a senha da porta!

- Se eu não te convidei e você não avisou que estava vindo, é invasão seu moleque idiota! - me aproximei daquele poste e exatamente nesse momento, senti falta da altura extra que os coturnos proporcionavam. Peguei um guardanapo com as mãos e limpei seu rosto todo sujo de molho de tomate. - Você não tem comida em casa?

- Eu até tenho, mas nada que eu faça fica gostoso como a sua comida, noona. - se não fosse pelo fato de sermos quase gêmeos com quase 7 anos de diferença, teria certeza que fui trocada na maternidade ou coisa assim.

O tempo que passamos longe um do outro pode ter contribuído para que eu esquecesse, mas a verdade é que Kim Yugyeom é total e completamente insuportável. Agora me ocorre que talvez mamãe tenha mandado ele para Daegu com segundas intenções, além da faculdade, simplesmente para se ver livre desse peste. Seis anos de diferença são significativos e sendo policial, com os turnos loucos e plantões frequentes, eu precisava da minha privacidade então aluguei um apartamento ao lado do meu para ele. Primeiro erro, aparentemente. O segundo, pelo visto, foi ter dado a senha do meu apartamento para alguma emergência. Acho que está implícito que inabilidades domésticas não são emergências plausíveis.

The Man of My DreamsOnde histórias criam vida. Descubra agora