𝘗𝘳𝘰𝘭𝘰𝘨𝘰

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Nós crescemos na floresta, onde metade era inverno, metade era outono, às vezes dia, às vezes noite, e assim dançávamos inocentemente sobre a neve, festejando entre as auroras e nos divertíamos contando as estrelas no céu escuro.

Às vezes penso que talvez pudesse ter sido diferente.

Porque ela sempre me disse que nós somos donos do nosso próprio destino.

Seu cabelo comprido cor de carvão – como os meus – se arrastava na neve enquanto juntos rodopiávamos nos aquecendo brevemente na lareira, vivendo em um conto de fadas que eu mesmo parecia ter criado, naquela noite em que tive um último resquício, talvez a última sensação de felicidade.

Eu era apenas uma criança, me perguntando constantemente como era viver do outro lado, no outono.

E de uma noite para outra eu vi tudo o que eu amava escapar tão facilmente de meus braços.

O fogo se espalhando pelo meu quarto tão pequeno.

Quando vi a lâmina cortar ao meio o cabelo tão bonito de minha mãe.

Quando vi as lágrimas escorrendo em seus olhos antes tão brilhantes, eu entendi...

Toda aquela felicidade e inocência se esvaíram.

Eu já não era mais dono de mim mesmo.

Minhas noites nunca mais se resumiram a minha pequena ideia do que era ser feliz, desde que nos acorrentaram e nos trataram como um animal de circo, nos obrigando a entreter aqueles que tinham dinheiro e poder o suficiente, para nos comprar como se fossemos roupas das mais caras, nos utilizando e nos obrigando a virarmos familiares por contratos forçados. Eu nunca entendi exatamente, o que nos levava a nos submeter tão facilmente, talvez fossem os castigos que escravos como nós recebíamos após desobedecer ou cometer um simples erro.

Quando adoecíamos éramos deixados para morrer, às vezes sendo jogados como alimento para os verdadeiros animais, hienas, tigres, leões, pareciam ser mais humanos do que nós mesmos. Crianças como eu eram deixadas para apodrecer dentro da cela, ou às vezes leiloadas e separadas de sua família, por alguma razão minha mãe fez questão de me fazer esquecer o meu próprio nome.

Quem é Min Yoongi?

Eu não me recordo mais.

— Senhor! Por favor, me ajude! — a mulher balançou levemente as barras de ferro da cela aos berros, meus olhos cansados seguiram seu movimento desde suas mãos cheias de cicatrizes até seus pés, onde se encontrava uma criança um pouco mais nova do que eu, ardendo em febre. — O meu filho... ! O meu filho vai morrer se continuar assim, por favor! Eu imploro! — ela soluçou alto, ninguém ali dentro moveu um dedo para ajuda-la, mas de alguma forma eu senti como se sua dor se transferisse para mim, e então silenciosamente a deixei escapar, a lágrima fina que escorreu pela minha bochecha ressecada e então evaporou ao cair sobre os trapos em que vestia. A barra tremeu mais uma vez, causando um eco por todo o corredor.

O homem então silenciosamente caminhou até ali, abrindo a cela e puxando a criança pelo braço para fora dali, a mãe então começou a gritar desesperada, mas ninguém tinha forças para impedi-lo, mesmo que soubessem como aquilo iria acabar.

— Já estava na hora do jantar dos leões. — ele respondeu.

Minha mãe então me abraçou, talvez estivesse com medo de que eu também fosse levado, meus dedos passaram por entre seus fios mal cortados e então adormeci aos poucos, exausto de tanto trabalhar.

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Às vezes os ouço agradecerem aos deuses em deleite, chamando este lugar imundo de paraíso.

Talvez eu tenha tido a ideia errada de paraíso, pois onde estou os anjos foram erradicados de maneira brutal, e os humanos que deveriam ser tratado como iguais estão por aí rodopiando pela sala, como em um espetáculo para os ricos.

Vestindo roupas que não querem, sorrindo de maneira falsa, sendo obrigados a dançarem até a morte.

Se isso é o paraíso

Quem sabe eu prefira estar no inferno.

Seus pés delicadamente a levaram a rodopiar, carregando em seus braços um véu transparente, minha mãe dançava no palco especialmente feito para ela, seus cabelos se bagunçavam conforme seus giros bem ensaiados, seu suor pingando conforme o fogo das tochas aumentava, sua joia parecia prestes a pular do peito quando ela respirava profundamente, alguns diziam que ela era um desastre no palco, outros a chamavam de musa. E mesmo assim ninguém ao salvou quando deu o passo errado e caiu do palco.

Silêncio.

E então eles a carregaram dali como um trapo imundo e rasgado, enquanto o sangue que escorria de sua cabeça continuava a pingar no chão.

Por um instante eu me questionei, se realmente merecíamos esse tipo de tratamento.

Se todas aquelas chicotadas, tapas, cortes, fossem nos ensinar algo além de ''nos colocarmos no nosso lugar''.

Eu era apenas uma criança.

Uma criança que teve o maior pesadelo de todas as outras crianças sendo realizado, aos longos dos dias a minha mãe apenas piorou, adoeceu, e sempre que eu chorava com medo do que aconteceria em seguida ela cantarolava até que eu dormisse.

''Pequeno Hórus, não se preocupe... A mamãe vai ficar bem, e depois que isso tudo acabar nós vamos voltar para casa e eu farei um jantar delicioso para nós dois''

''Promete?''

''Eu prometo. ''

E então seus olhos lentamente se fecharam, brilhando uma última vez contra os meus, naquela noite a joia presa em seu peito também perdeu o brilho, uma pérola antes tão cativante parecia ter se tornado um desprezível carvão. Naquela noite eu pouco me importei se os outros iriam acordar com os meus gritos, eu não me importei, porque minha mãe não acordaria mais.

O azul que brilhava em meus olhos de início foi tão calmo, tão singelo que mal percebi quando toda aquela chama de mesma cor já havia tomado conta do lugar, mas por alguma razão ela não me queimava, apenas parecia tão triste e desprezível quanto eu, os gritos de desespero quebraram o silêncio daquela masmorra infernal, aqueles homens que antes ousaram tocar em mim se tornaram cinzas perante seus pecados.

Todos aqueles que sobreviveram correram por sua liberdade, voltando o mais rápido possível para suas antigas casas – o quão longe fosse – enquanto tudo o que fiz foi me despedir do corpo da única pessoa nesse mundo que me amou. Caminhando sem rumo para lugar algum, apenas carregando comigo aquelas chamas azuis, pela primeira vez eu pude observar a luz da lua com tanta tranquilidade.

Meus pés cansados de tanto caminhar fraquejavam diante do percurso tão curto que fiz, ainda podia ver aquele lugar pegando fogo, ainda podia ver tudo o que tiraram de mim, ser deixado ali como se não fosse nada.

— Uma criança! — o ouvi dizer desesperado, eu paralisei por alguns instantes, suas mãos se aproximaram de meu corpo e então eu me encolhi assustado, não queria ser castigado de novo. — O que faz aqui garoto? Por que está nesse lugar... ? — ele me perguntou tentando me acalmar, mas eu estava em transe. — Como puderam fazer isso com uma criança! — exclamou olhando as correntes que estavam em meu calcanhar. — Escute... Vim tirar você daqui, você e os outros. — eu não sabia quem era aquele homem, e muito menos raciocinei se ele realmente se importava comigo quando comecei a soluçar baixinho, minha visão estava turva quando eu o encarei, carregando uma imensa raiva em meu peito.

Por que você não veio antes?!

Meus olhos transbordaram lágrimas grossas e pesadas, as quais eu guardei por tanto tempo e agora elas simplesmente vazaram como se estivessem prestes a me afogar, o meu peito subia e descia rapidamente, provavelmente enlouquecendo aos poucos, eu berrei, esperneei e me deixei escorrer. Como uma criança da minha idade faria. 

Cosmo ↬ ᴛᴀᴇ + ɢɪOnde histórias criam vida. Descubra agora