Outra rua. Entram Otelo, Iago e criados com tochas.
IAGO — Muito embora no ofício de soldado eu já tenha matado muita gente, assunto considero de consciência premeditar um crime. Muitas vezes pensei nove ou dez vezes em furá-lo aqui, sob a costela.
OTELO — Está melhor como está.
IAGO — Sim; porém ele palrava de tal modo e assacava tais vilezas contra vossa honra, que o meu pouco temor de Deus a custo conseguiu sofrear-me. Uma só coisa vos pergunto, senhor: estais realmente casado? Há segurança? Uma certeza podereis ter: que é muito venerado entre nós e Magnífico, valendo sua voz como a do doge em tudo quanto nele toca de perto. Se o divórcio não conseguir levar a cabo, ele há de causar-vos tanto incômodo e desgosto quanto o Direito, com sua força toda, lhe afrouxar as amarras.
OTELO — Desabafe como bem entender, porque os serviços que eu prestei ao Conselho, suas queixas todas suplantarão. Eis o momento de se saber — o que tornarei público quando essa ostentação constituir honra — que o ser e a vida eu recebi de berço de descendência real e que meus méritos aspirar podem, de cabeça erguida, à posição que até hoje me alcançaram. Porque te juro, Iago: se não fosse o amor que voto à mui gentil Desdêmona, eu não iria pôr a minha livre condição de solteiro em nenhum elo que viesse confiná-la. Não; por todos os tesouros do mar. Mas olha: luzes! Vêm nesta direção.
IAGO — É o pai, decerto, com os parentes que foram despertados. Seria mais prudente retirar-vos.
OTELO — De forma alguma! Quero que me encontrem. Meus serviços, meu posto, a alma tranqüila vão demonstrar-lhes quem eu sou, de fato. Mas são eles?
IAGO — Por Jano! Não parece.
(Entram Cássio e certos oficiais, com tochas.)
OTELO — São pessoas do doge e o meu tenente. Que a noite vos proteja, bons amigos. Que novidades há?
CÁSSIO — O doge manda saudar-vos, general, e vos convida com o máximo de pressa a aparecerdes agora mesmo na presença dele.
OTELO — Sabeis para que seja?
CÁSSIO — Algum assunto com relação a Chipre, é o que presumo; negócio muito urgente. Já mandaram das galeras uns doze mensageiros desde que ficou noite, um após o outro. Muitos dos membros do Conselho foram despertados e estão junto com o doge. Com bastante insistência vos procuram, e, como em casa não vos encontrassem, enviaram mensageiros por três partes diferentes, a fim de vos chamarem.
OTELO — Foi bom haver sido eu por vós achado. Vou apenas dizer duas palavras a esta casa; depois vos acompanho. (Sai.)
CÁSSIO — Alferes, que faz ele aqui?
IAGO — Ora essa! Esta noite abordou uma caraca terrestre. Sendo a presa declarada legítima, realmente, ele está feito.
CÁSSIO — Não compreendo.
IAGO — Casou.
CÁSSIO — Casou com quem?
IAGO — Ora essa, com... (Volta Otelo.) Não vamos, capitão?
OTELO — Estou pronto.
CÁSSIO — Aí vem uma outra tropa, para vos convocar.
IAGO — Muito cuidado, general! É Brabâncio. Ele não vem com boas intenções.
(Entram Brabâncio, Rodrigo e oficiais, armados e com tochas.)
OTELO — Olá! Parai!
RODRIGO — Senhor, é o Mouro.
BRABÂNCIO — Morte a esse ladrão!
(De ambos os lados se desembainham espadas.)
IAGO — Vós, Rodrigo? Senhor, estou convosco.
OTELO — Guardai essas espadas, que o sereno vai causar-lhes ferrugem. Venerável senhor, maior autoridade vossos anos impõem que todas essas armas.
BRABÂNCIO — O infame raptor! onde escondeste minha filha? Infernal como és, decerto a enfeitiçaste. Apelo para todos os seres de sentido: se não fosse ter sido presa por cadeias mágicas, como uma jovem tão formosa e terna, tão feliz, tão avessa ao casamento que evitava a presença dos mancebos ricos e de cabelos anelados de nosso Estado, como poderia, expondo-se à irrisão de toda gente fugir de seu guardião, para abrigar-se no seio escuro e cheio de fuligem de uma coisa como és, mais feito para susto causar do que qualquer deleite? Sirva de testemunha o mundo inteiro de como praticaste encantamentos com ela, abomináveis, abusaste de sua mocidade inexperiente com inúmeras drogas que no espírito atuam e o enfraquecem. Vou prová-lo. É fato indiscutível, evidente. Por isso te detenho e prendo como a embusteiro universal, que exerce arte ilegal proibida pelo Estado. Prendei-lo logo. Caso vos resista, usai de força, embora com perigo de perder ele a vida.
OTELO — As mãos detende, tanto os que estão comigo como os outros. Se minha deixa fosse de combate, dispensaria o ponto. Aonde é preciso que eu vá, para vos dar cabal resposta sobre o de que me argüis?
BRABÂNCIO — Para a prisão, até que decorrido o tempo certo a uma sessão legal tu compareças, para me responderes.
OTELO — E no caso de vos obedecer? Como há de o doge mostrar-se satisfeito, se ao meu lado tenho seus emissários, incumbidos de me levarem para onde ele se acha, para tratar de assuntos de república?
OFICIAIS — Muito nobre senhor, o que ele disse é tudo verdadeiro. O doge se acha no Conselho, e estou certo de que Vossa Nobreza foi chamado.
BRABÂNCIO — Como! O doge convocou o Conselho? E em plena noite! Levai-o! Minha causa é de importância; o próprio doge e os manos do governo hão de sentir a ofensa como própria. Se um crime tal não for bem castigado, pagãos e escravos mandarão no Estado.
(Saem.)
