Memória II

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A segunda memória se encontrava em um lugar tão diferente da primeira, antes estavam em um lugar tão límpido de paredes brancas, onde o cheiro de seu jardim invadia os quartos, inclusive daqueles que iriam partir. Mas ali, era um lugar tão escuro, seu cheiro igualava a algo a qual a mulher não pode reconhecer, algo a qual fazia torcer o nariz, tentando enxergar a sua frente, pois podia ouvir fracos sons de batimentos, a suplência de quem chamava a sua mãe, e aquilo cortara seu coração, que já carregava cicatrizes. Kyaria seguiu a dentro daquele lugar escuro, ignorando as poças de água a qual pisava, até finalmente chegar ali, na segunda alma.
Era um pequeno menino, em torno de seus 6 anos de idade, de feição inocente, com lágrimas escorrendo por aqueles olhos amendoados, podendo notar a dor o qual ele sentia a cada vez que respirava, perto de seu doce coração havia um ferimento, que sujava a sua camiseta com um sangue tão vivido, mas que tirava a sua própria cor. Então de forma delicada, Kya se ajoelhara ao chão, com suas mãos o puxando delicadamente ao seu colo, notando a curiosidade aparecer de um jeito tão fraco, mas ao mesmo tão esperançoso, como se um anjo tivesse vindo o salvar, para o devolver aos braços da mãe, e aquilo pareceu a matar por dentro.
Seus olhos não deixavam aquele rostinho, e um sorriso tão maternal aparecia sobre os lábios, sussurrando que estava tudo bem agora, que estava seguro nos seus braços. Mas tal sorriso logo sumira ao ouvir uma voz próxima ali, a fazendo tirar os olhos do menino, para finalmente notar uma nova presença, mais uma alma que estava ali, que gritava para que a mesma se afastasse da criança, “se afaste seu demônio” – era o que ele tanto dizia, e foi ali, que descobrira o culpado por aquilo. Na visão do homem, Kyaria remetia ao mais feioso demônio, que ao tocar no rosto do menino, parecia que suas unhas iriam rasga-lo, rasgar sua face antes de arrancar o restante de sua pele, sendo algo que o atormentaria tanto naqueles momentos finais, tanto em seus longos séculos nos campos de torturas, onde ficaria por sua eternidade, perdendo a chance de assim, voltar um dia para o mundo dos vivos como uma nova pessoa.
Ignorando aqueles gritos ao fundo, Kya voltara a olhar para aquele pequeno anjinho aos seus braços, tendo uma expressão amável mas ao mesmo tempo tão cheia de dor, antes de fechar os olhos, deixando que as memórias invadissem sua mente, o seu coração. A primeira, fora quando aquele pequeno serzinho vira sua mãe pela primeira vez, um olhar tão inocente, que mesmo sem saber falar algo, já podia sentir todo o afeto, inclusive quando ia para aquele braços, aninhado, como se aquilo fosse o seu porto seguro para o todo sempre.
As memórias passavam de forma rápida a sua frente, momentos que a fazia se apegar aquela criança, que sempre fora tão apegado a mãe trabalhadora, enquanto o pai, parecia apenas um borrão distante, como se fosse nada, tornando-se apenas um vulto, antes de virar cinzas. Kyaria parara sobre uma das memórias, um dia em que aquela criança estava na companhia de sua mãe, sentando sobre a grama de um belíssimo campo, enquanto viam as estrelas brilhando sobre o céu, algo que o encantava, inclusive quando uma nova parecia para brilhar.
– Mamãe! Aquele ali é o papai? – Perguntou o menino ao apontar para estrela que brilhava tão fortemente quando o mesmo apontava.
– Talvez seja ele sim! Por que não o cumprimenta? – A mãe soltou, seu olhar tão cansado mostrava noites mal dormidas, mas o jeito em que seus olhos lacrimejaram ao citar seu marido, era algo que a portadora quis sentir, sentir aquele amor que ainda continuava vivido de um lados.
– Oi papai! Como é ai em cima? – O menino gritava aos céus, esperando sua resposta.
Kyaria naquele momento sentiu lágrimas queimaram em seu rosto, a tristeza invadir o seu peito, o choro ficar preso em sua garganta, desejando não sair daquela memória, queria ficar nela, queria morar na pureza dela. Mas não podia, não sem antes de dar o seu obvio veredito.
Na lembrança seguinte, lá estava aquele homem do beco, algo que fez substituir sua tristeza por nojo, nojo daquele que havia se tornado o novo namorado daquela mãe, mas que odiava aquela criança por sempre trazer a memória do ex-marido da mesma. Podia ver o desgosto, o jeito tão cruel que tratava aquele menino quando a mulher saía para trabalhar, aquelas palavras, aqueles tapas, tudo isso fazia com que a portadora se sentisse inútil, inútil como se não pudesse fazer nada por aquele serzinho, não o protegendo como uma verdadeira mãe faria! Nada podia fazer, aquilo eram apenas memórias. Aquilo estava a matando, pois mesmo que aquele homem estivesse o maltratando, em nenhum momento o menino deixara de orar ao seu pai, aos seus deuses, pedindo para que fossem finalmente uma família feliz, sua fé nunca desaparecia. Até o momento em que as cinzas de seu pai fora ao chão, e seu altar destruído por ciúmes a qual ninguém entendia, tirando o seu porto seguro quando os braços de sua mãe estavam distantes.
“por que não o leva para tomar sorvete? Talvez assim ele aceite mais fácil a ideia do nosso casamento” A mulher havia comentado aquilo, aquilo que mal sabia que seria o fim de seu filho.
E um momento, Kyaria a odiou, a odiou por ser tão cega ao ponto de não saber o que acontecia, que não saber aquilo fora a sentença para aquela alma. Um sentimento tão impuro em seu peito tomou, queria gritar, queria acusar...mas não podia. Ela era uma mãe em busca de dar uma família completa a aquele menino, para que não crescesse sem alguém que pudesse admirar, mas se esqueceu, que deste que o pequeno a vira, ela havia se tornado sua inspiração, a sua admiração por aquela que trazia cores ao seu mundo.
A última memória fora a mais doída, estava tão arrumadinho para tomar seu sorvete, trajando roupas tão bonitas, usando sua camiseta favorita! Estava tão sorridente, tão alegre achando que os deuses havia os ouvido, enquanto saía na companhia daquele homem.
– NÃO! NÃO SAIA COM ELE! – gritara  a portadora, que tentou segurar no braço daquele menino.
Então, seus olhos se abriram, estava abraçada a aquele menino, o dando conforto dos braços de sua mãe, com seus lábios sussurrando palavras piedosas, implorando para que ele não fosse, implorando para que ele ficasse, ficasse ali com sua mãe. Estava tão apegada a aquela inocente alma, que chegava a dar a sensação que havia passado por aquilo, que já havia passado por aquela dor, não se importando com a chuva que tocava seus cabelos, levando consigo os últimos batimentos daquele menino.
– Kyaria... – Disse o Shinigami ao seu aproximar, tocando suavemente no ombro daquela mulher.
– Não! Deixe ele ficar! Deixe ele crescer! – Implorava a garota, seu coração agora tinha um misto de sentimentos, sua mente ainda tão focada na última memória feliz, não queria que aquele sorriso sumisse.
– Kya...ele já partiu.
E na primeira vez, após tanto séculos, a portadora não aguentou e deixou-se cair em lágrimas, um choro tão sofrido, abraçada ao corpo daquele menino, sentia como se tivesse falhado com ele. E ali ficara por minutos, antes de ouvir as sirenes das viaturas, algo que forçadamente a fizera se afastar daquele anjinho, o colocando suavemente naquele chão manchado com seu próprio sangue.
– Descanse, minha nova estrelinha. – Kya sussurrou, acariciando suavemente aquele rosto sem cor, antes de se levantar, e se virar ao Shinigami, que viera a abraçar, o envolvendo com seu calor.
– Ele sempre estará vivo nas memórias daquela mãe, sempre vai estar aqui, no coração. – O Homem sussurrou, antes de se afastar, oferecendo seu braço. – Venha...temos que descansar.
E assim que desapareceram dali, uma pequena e nova estrela brilhara aos céus, sabia que agora, ele estava ao lado de seu pai.
Enquanto fora a vez da mãe chorar pelo seu filho.

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⏰ Última atualização: Aug 24, 2020 ⏰

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Kyaria Omoideno - a portadora de memóriasOnde histórias criam vida. Descubra agora