ᴄᴀᴘíᴛᴜʟᴏ ɪ

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Fora de órbita. Foi assim que Ícaro encontrou Zoe. Estava com a mochila surrada do ensino médio pendendo do ombro direito e a câmera polaroid anos 70 — legado de um pai que também amava a fotografia — no pescoço. Tinha mais brincos na orelha do que da última vez e olhos brilhantes e inchados.

— Ick.

— Oi, Zoe.

Abriu os braços. Ela esfregou os olhos com as mangas do moletom grande demais para ela antes de apoiar a cabeça no ombro dele ao abraçá-lo.

Não faziam ideia de quanto tempo o abraço já durava. Nem queriam saber, no fim das contas. Juntos daquele jeito as coisas pareciam menos tenebrosas. Foi Ícaro quem quebrou o contato delicadamente ao afrouxar o abraço e se afastar após um beijo na testa de Zoe.

— Vamos lá, Z — sussurrou, procurando a mão dela com a sua.

Zoe apertou a mão dele em resposta e eles desceram os lances de escadas do prédio.

O mustang azul anos 60 estava mais desbotado do que Zoe lembrava, mas continuava tão encantador quanto da primeira vez em que pôs os olhos nele.

Ela entrou, colocando a mochila entre os pés. Ícaro encaixou a chave na ignição e deu a partida assim que entrou, temendo que um dos dois — ou os dois — desistissem.

A ideia era excêntrica. Sabia disso. Mas era necessária. Qualquer pessoa acharia perda de tempo se soubessem sobre a mirabolante quimera. Ninguém sabia, entretanto. Ícaro e Zoe precisavam fazer aquilo sozinhos.

Quando Ícaro ligou o som e a playlist começou a tocar, a música quase o fez dar meia volta.

Zoe parecia estranhamente quieta. Abriu a mochila sob os ouvidos atentos de Ícaro, já que os olhos focavam na estrada, e retirou um livro grosso. A capa era firme como a de um livro, mas, em letras de diferentes fontes, cores e tamanhos recortadas a mão em formatos irregulares, o nome inscrito na capa era "Fotografias".

Ela cantarolou baixo a letra por alguns segundos antes de abri-lo. Descolou a primeira foto da fita que a prendia e estendeu-a de forma que ambos pudessem observar.

Ícaro olhou de relance a foto: três crianças vestindo o uniforme escolar, fazendo caretas engraçadas e com os braços entrelaçados. Sorriu. Faltavam dentes na boca dos três e Zoe ainda andava para todo lado com o elefante de pelúcia.

— Que fim esse elefante teve no fim das contas? — Ícaro questionou.

— Ainda está empoleirado na prateleira ao lado da cama.

— Você tinha tantos ciúmes dele que não deixava nem a gente tocar. — Ícaro riu.

Ela colocou a foto de volta e passou algumas páginas antes de pegar a próxima. Dessa vez, Zoe vestia o uniforme do time de futebol, Felipe segurava as baquetas na mão direita e Ícaro abraçava um livro de capa azul.

— Você ficava linda nesse uniforme.

— Ficava? — Zoe arqueou a sobrancelha, vendo Ícaro assentir em resposta.

— Parecia que eu tinha roubado o uniforme de um garoto uns três anos mais velho que eu.

Ícaro deu de ombros.

— Ficava linda mesmo assim — murmurou, apertando o volante com um pouco mais de força que o habitual.

Zoe tinha a habilidade de deixá-lo nervoso facilmente. Por aí se via o tanto de nervosismo que já tinha passado na vida. Deveria estar acostumado. O engraçado, Ícaro pensou, era que ela também conseguia acalmá-lo na mesma proporção.

— Você era o maior nerd que eu já conheci. — Zoe sorriu, observando a foto, mais especificamente o garoto sardento e com óculos fundo de garrafa que tinha sempre um livro em mãos.

— Na verdade, eu ainda sou o maior nerd que você conhece. — Ícaro corrigiu-a.

Zoe passou o olhar da foto para ele. As sardas continuavam ali, o óculos, no entanto, não existia mais. Há alguns anos deixara de usar. No fim, Zoe sabia que ele estava certo. Ícaro continuava o mesmo menino que sonhava em ser astronauta. Agora caminhava para ser astrônomo. Ela pensou que nada mais poderia servir tão bem para alguém que carrega o universo nos olhos.

— O Fê, por outro lado, era o maior preguiçoso — disse Zoe, repousando o olhar sobre o outro garoto da foto.

O coração parecia nem caber dentro do peito e ela sentiu como se estivesse sufocando. Latejava.

Ícaro percebeu a mudança na atmosfera e repousou a mão sobre o joelho dela, fazendo um leve carinho no local por cima do jeans.

A verdade é que queria protegê-la. Queria assumir toda a dor para si, mesmo que isso significasse somar mais dor a sua e criar um montante impossível de suportar. Nada disso era possível, entretanto. Por isso, optou pelo silêncio — que sabia ser agradável para Zoe nesses momentos — e pelo apoio implícito naquele deslizar suave de dedos.

Zoe abraçou o silêncio e, em agradecimento, colocou sua mão sobre a dele, acariciando-lhe a pele. Colocou a fotografia de volta no lugar e voltou a passar as páginas com a mão livre. Parou algumas páginas depois e apanhou mais uma.

— Você lembra dessa garota? — perguntou, indignada com a ideia de não reconhecer alguém em uma foto que ela mesma tirara.

Ícaro deu uma olhadela, desconfiado. Se Zoe que era a fotógrafa não lembrava, quem dirá ele que estava sempre absorto em pensamentos. A desconfiança deu lugar a nostalgia quando ele inesperadamente a reconheceu.

Tinha olhos verdes que deixavam o Ícaro de quinze anos tonto e alguns centímetros a mais que ele perceptíveis na foto. Júlia laçava o pescoço dele enquanto sorria de orelha a orelha, ao passo que ele a olhava de soslaio meio bobo com uma marca de batom bordô na bochecha.

— Júlia. Foi a primeira garota que eu beijei.

Zoe arqueou as sobrancelhas. Uma pequena ruga de expressão surgindo entre elas como se para indicar a estranheza dela em relação a esse fato. Não sabia porque tirara a foto. A nostalgia de olhar para ela nem sequer parecia certa.

— Foi naquela festa do ensino médio. Você e o Fê me arrastaram até lá com a desculpa de que eu precisava tirar a cara dos livros ou ia enlouquecer. Lembra?

Zoe lembrava e não sabia bem o porquê, mas, se fosse no presente, provavelmente teria deixado Ícaro dentro dos livros. Ainda assim, confirmou enquanto guardava a fotografia de volta. Deixou o álbum de lado por um momento e observou Ícaro.

Tinha uma das mãos firme no volante enquanto o outro braço descansava preguiçosamente no peitoril da janela do carro, tamborilando a melodia de uma música do Arctic Monkeys. O cabelo parecia em chamas onde era iluminado pelos raios de sol. As sardas cobriam intensamente a pele das bochechas, do nariz e, como em uma galáxia, formavam uma espiral brilhante e difusa que pontilhava com constelações até mesmo os lábios.

Ele fechou os olhos, saboreando a música na ponta da língua e Zoe soube. Ícaro era um universo possuidor de uma energia que nenhuma câmera poderia captar adequadamente. Era estarrecedor de uma maneira singela e linda.

Foi nesse ponto que os dedos, fervorosos de excitação, seguraram a câmera com afinco e Zoe tirou uma foto, mesmo ciente de que apenas seus olhos eram capazes de apreender verdadeiramente o cosmos que Ícaro era.

O disparo fez Ícaro abrir os olhos e encará-la, atônito. Ela tinha a foto em mãos, aguardando a imagem ficar nítida. Tão distraída que não percebeu que tinham chegado. Ícaro estacionou e, mesmo que observar Zoe não fosse perda de tempo em hipótese alguma, murmurou, na intenção de desprendê-la de seu âmago:

— Chegamos, Z.

1242 palavras.

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