Zero à direita

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Um pouco de infinito, que, mesmo sendo pouco, proporciona a ideia do quanto é quanto, a cardinalidade pura, de maneira dialeticamente magistral, e, até mesmo, a ideia do que é efêmero, tornando o finito realmente palpável, assim como nos ensina, a falta de estímulos psíquicos, de fato, o que significa seu antônimo: a euforia.

Escrever um testamento nunca fora tarefa das mais aprazíveis, seja pelo amargor do inevitável, pelo sentimento nostálgico travestido de saudosismo, ou até mesmo pela ideia de insuficiência. Insuficiência pelo que fizemos, pelo que não fizemos, pelo que poderíamos ter ou pela simples insuficiência que ronda o conceito de morrer. Passei por isso, mas nunca, nunca em minha vida, ou em minha morte, tive a capacidade de mirabolar passar por isso não uma, mas duas vezes. Por ora.

Meu advogado, na época, era provavelmente mais velho do que eu, ou, pelo menos aparentava. Ganhava, além da aposentadoria, com as migalhas de trabalho que o corpo ainda lhe permitia. Trabalhava com aquilo que gostava e, mesmo que mau visto por muitos, levava a tarefa de acompanhar testamentos como um velho hobby, adquirido com a carreira que, pelo que se notava, o acompanharia até que seu próprio testamento pudesse ser honrado.

Nunca fui de esperar, uma pessoa paciente, portanto, não esperei envelhecer até que os dentes bambeassem para que redigisse o que deixaria aos vivos quando partisse, até porque um homem que é homem, como aprendi em um famoso filme que não me lembro mais o nome, deve encarar e escrever seu destino com a própria nanquim e enfrentar o inevitável, afundando com o navio em seus melhores trajes. Sempre tive cravado em mim, o conceito de finitude e, mesmo chegada a hora, fiz questão de estar no controle.

Não deixei muito. Pelo menos, agora vejo que não, mas, na época, tenho certeza que proporcionei ao velho advogado o maior número de zeros que já tinha visto alguém redigir a próprio punho.

De quantos zeros se faz um "um"? Creio que seja uma pergunta que poucas pessoas se fazem, ironicamente, por a resposta ser muito óbvia e ao mesmo tempo inalcançável, mas, foi na segunda vez que escrevi meu testamento que realmente me vi obrigado a me fazer tal questionamento. 

Não sei que dia foi, pois, a partir deste marco, o tempo se desliga, apenas se existe, mesmo você não tendo plena certeza do que é a existência. Em hebraico, "Javé". Sim, morrer é como mergulhar no infinito, tornar-se recheio de um bolo de passas, no qual as passas se mantêm imutáveis enquanto a massa se retroalimenta de fermento químico.

Não me atentarei a narrar o que é morrer, ou o que é estar morto, pois seria a mesma coisa que explicar a um cego o que é azul, ou definir o exato tom no qual o amarelo se transforma em laranja. Me atentarei apenas em descrever. Descrição pura que apenas posso fazer agora, pois não mais estou inserido no infinito e que preciso fazer agora, pois tudo se tornou óbvio.

Sente-se, se posso chamar de sentir, que se está em um vazio. Vazio não é escuro, escuro é um conceito assimilável, vazio é um conjunto. Não se sabe tempo, não se sabe espaço. O infinito, que é o que se passará pela próxima infinidade, te faz não ligar e até mesmo apagar de você o que é verbo. Qualquer coisa que expresse ação e até mesmo a ação em si não existe em um ambiente em que não exista o "passar", o "acontecer". Qualquer ponto que se pegue em uma reta infinita, mesmo sendo ele mais rechonchudo, é apenas um ponto, que se perde e se torna invisível na imensidão. 

Quis o destino, ou algo maior que sei que existe por agora, que, após muito "tempo" de infinito, eu conseguisse agir. Por algum motivo que não ouso explicar e não ousaria indicar alguém que explique, fui designado a nascer, a me verbalizar novamente. Foi como se, em meio a um mundo paralelo, eu passasse a ter consciência da vida, assim como, no meu primeiro testamento, tinha a consciência da morte. Não estava mais inserido em algo meramente conceitual. Agora, podia sentir, mesmo sendo apenas espectro ou uma forma da matéria não compreendida, que estava caminhando a longos passos para florescer, brotar, fervilhar em caldeirão de tempo novamente.

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