Prólogo

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   Já passava da meia-noite quando o Honda Civic prata de Diogo Fonseca entrou na BR-282 em direção a Lages. Após quarenta dias retido nas instalações da Eletric Motor'RS, empresa na qual era gerente sênior de produção há dez anos, conseguira, enfim, a justa semana de folga após malabarismos intermináveis nas escalas de folga do segundo semestre. 

Estava fazendo aquele percurso de volta para Keylla como se fosse a primeira vez.

Só não sabia que seria a última. 

Imaginou a alegria naqueles olhos verdes no momento em que o visse cruzar a porta depois de todo esse tempo. Assim era bem melhor, sem avisar, ter o impacto da surpresa para endossar seu pedido de casamento. Não havia dúvida de que ela diria "sim", acreditava Diogo. Desejaram isso por muitos anos. Fizeram planos, discutiram qual seria a cor da parede da sala quando a casa estivesse pronta. Seguiram a cartilha perfeita do amor, com seus altos e baixos como qualquer casal. E quando estavam prestes alcançar o sonho, veio a promoção no trabalho e Diogo fez e pior escolha de sua vida. Assistiu a distância pouco a pouco dividir tudo ao meio colocando sonhos e projetos em gavetas abandonadas. O impacto desta escolha levou Keylla a pedir um tempo a fim de repensar o relacionamento, e dar a Diogo o espaço necessário para rever suas prioridades. 

Onze meses para acordar e perceber que estava perdendo aquilo com que - agora - mais se importava vida.

 Mesmo amparado por uma débil convicção de que Keylla ainda o amava, Diogo era golpeado por aquele habitual frio na barriga que antecede momentos decisivos na história de uma pessoa que aprendeu a reconhecer seus erros. Deixara passar tempo demais e pediu aos deuses que não fosse tarde. Não sabia dizer se era insegurança devido às ultimas palavras que Keylla lhe dissera, na noite em que ele juntara suas roupas e fora embora. Contudo, havia chegado a hora de contornar a situação. Não abriria mão desse amor por qualquer coisa neste mundo, nem mesmo por sua brilhante carreira, erro este que lhe colocara nesta frágil situação que se encontrava. Faria à Keylla uma promessa eterna. Tudo seria diferente agora. As desavenças entre eles seriam superadas. As longas ausências causadas pelo trabalho não se repetiriam mais. Pediria demissão se ela assim desejasse. Ele não estava apenas retornando ao lar; tratava-se de uma nova estrada, um caminho de recomeço, uma nova chance dada a ambos pelo senhor do destino. 

Diogo Fonseca fitou o buquê de rosas acomodado sobre o banco do carona e a caixinha vermelha de alianças ao lado. A ansiedade pela chegada fez com que aumentasse a velocidade, chegando quase a 90 km, enquanto murmurava uma canção qualquer que não lembrava o nome. Virou em sentido à BR-475, e poucos minutos depois chegou à SC-112 com destino final a Urupema. Faltava pouco. Mais alguns minutos e você será um homem feliz, Diogo, creia nisso. Você pode reconquistá-la, seja humilde e se humilhe.

Relâmpagos azulados cortavam o céu gélido na primeira madrugada de agosto, seguidos de longas trovoadas. A primeira chuva ainda não havia caído, mas estava prometendo desabar a qualquer momento. Diogo sentiu os dedos quase congelarem sobre o volante e decidiu ligar o aquecedor. A baixa luminosidade tornou isso algo difícil e levou mais tempo que o normal para encontrar o botão. Agora, ele estava de olho na estrada, mas também desviava sua atenção rapidamente para o painel do carro. Constatou que o botão não estava onde deveria estar. Fez uma careta de insatisfação inclinando o corpo enquanto passava a mão no chão do carona, tateando os cantos. Mas que droga! Amaldiçoou Barney, seu secretário chefe que costumava usar seu carro para resolver pequenas questões da empresa, ou isso era o que deveria ser. Diogo imaginou que evento catastrófico teria acontecido no banco da frente para que o botão do aquecedor fosse arrancado, dada a inclinação de Barney para promiscuidades com suas amantes. Devia demitir aquele filho da mãe. 

Cuidaria de Barney depois. 

Dissipou as especulações  e com gestos furtivos acionou a seta à direita e estacionou o Honda uns cinco metros depois de uma curva acentuada, margeada por uma ribanceira funda e escura. Puxou o freio de mão, que soltou um rugido estridente, colocou em ponto morto e depois desprendeu o cinto de segurança. Olhou pelo retrovisor e só o que viu foi a escuridão que deixara para trás. O lugar mais parecia o cenário de um filme de terror. Digo abaixou cuidadosamente no banco do carona para não amassar as rosas. O esforço repentino fez surgir um pontada de dor na lombar. Em seguida, tateou as laterais do banco onde estava sentado, acendeu a luz interna, vasculhou no porta luvas, nos vãos entre os assentos traseiros. Não estava em lugar algum. Recostou novamente as costas e soltou um suspiro longo e cansado. É apenas um maldito botão, nada que vá estragar minha noite. À sua frente, o outro lado da escuridão era engolida pouco a pouco pela geada fina que começava a cair embaçando completamente o para brisas dianteiro. A silhueta de Keylla Marques se projetava todo tempo em seus pensamentos, e era por ela, somente por ela, que Diogo estava decidido a voltar. Claro que se tivesse pedido permissão ela não daria, mas isso não significava que Keylla não o queria por perto. Pedir um tempo não é dizer adeus. Era o que ele repetia para si mesmo todos os dias, quando a saudade esmagava-lhe o peito. Mesmo sabendo que ela teve seus motivos, Diogo tentava compreendê-la, embora não aceitasse em seu coração. 

Tratou de se recompor, prendeu o cinto novamente, engrenou a primeira marcha e depois soltou o freio de mão. Quando pressionou o acelerador, o carro desligou sozinho.

E não ligou mais.

- Céus, era só o que me faltava! - disse enquanto virava a chave vez após outra, mas sem sucesso. - Vamos, vamos...

O Honda esperneava feito um cavalo empacado. Diogo desejou gritar um palavrão mas poupou-se do esforço inútil. De que isso lhe adiantaria? Estava no meio de uma estrada escura, sozinho, sob uma tempestade pronunciada, e para piorar, longe do amor de sua vida. Pensou em sair do carro, mas desistiu da ideia com a mesma velocidade. A geada no pára brisa virara uma fina camada de gelo, e Diogo deduziu estar uns três graus negativos do lado de fora. A ultima coisa de que precisava era uma gripe. 

Talvez a bateria tivesse descarregado, não seria a primeira vez. Repreendeu a si mesmo por não tê-la trocado quando Maurício, seu mecânico, lhe avisara. A voz dele era quase que uma acusação "Eu lhe avisei Diogo, mas sua teimosia sempre lhe vence". Talvez ele estivesse certo, mas Diogo não imaginou que aconteceria num momento absolutamente inoportuno. Sentiu-se perplexo com própria falta de sorte.

Podia pegar o telefone e ligar para Keylla pedindo ajuda, mas isso estragaria a surpresa e sua chances estariam comprometidas por distrações desnecessárias. Teria direito a reboque caso pagasse um seguro, mas não ter um seguro era mais um dos muitos erros que insistia em cometer.

O jeito era esperar um milagre. 

Quando uma luz amarelada pouco a pouco começou a crescer no retrovisor esquerdo vinte minutos depois, Diogo não perdeu tempo. Dane-se a gripe! Sem pensar demais, ele abriu a porta e correu para trás do carro balançando os braços. Seu milagre havia chegado. Talvez fosse um guincho perdido no meio noite, ou até mesmo um anjo enviado do céu para generosamente rebocar seu carro até Urupema. Fosse milagre ou não, para Diogo Fonseca não fazia diferença. Ele só queria voltar para Keylla e viver uma vida longa e feliz ao lado dela. 

A luz foi crescendo cada vez mais diante dele. Houve um barulho de pneu derrapando sobre o gelo do asfalto e alguma coisa enorme vindo em sua direção. Aconteceu muito rápido. Diogo percebeu de relance que havia parado o carro para fora do acostamento, mas era tarde demais. Um clarão súbito lhe cegou os olhos. Foi o tempo de tentar se proteger colocando os braços na frente do rosto. Ele sentiu uma pancada forte e fria, seu corpo sendo lançado contra uma superfície metálica, e depois a súbita descida até o chão. De repente, o ar se recusava a entrar em seus pulmões e a escuridão parecia crescer aos poucos. Quando tentou mover seus braços na tentativa de se levantar, era como se eles não existissem. Estava tão desfuncional quanto seu Honda. Um líquido morno escorria em seu rosto e era como se a vida saísse dele aos poucos. 

Naquele momento, ele viu Keylla sorrindo sentada confortavelmente junto à lareira da sala de estar, admirando a aliança dourada em seu dedo. Ela estava linda. Para Diogo Fonseca, um homem perdidamente apaixonado em busca de se retratar, aquilo devia ser um "sim". Esta era, sem dúvida, a definição perfeita de felicidade.  

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