DESDE AQUELE DIA, a garota sumiu.
Tentei pensar em inúmeros outros motivos como provas e trabalhos extracurriculares, mas era coincidência demais. Isso tudo era só uma forma de me sentir menos culpado.
Contar para Spike o que tinha acontecido fora uma péssima ideia, fato. Foi a faísca para ele surtar de vez e não falar mais nada comigo além da garota-de-óculos. Mas eu precisava botar aquilo para fora senão seria eu quem surtaria.
Então, vê-la sentada na mesma mesa, na mesma posição e com o mesmo pedido era perturbador, reconfortante e confuso ao mesmo tempo.
Perturbador porque era ela. E eu dei uma mancada atrás da outra da última vez que nos falamos.
Reconfortante porque era ela. Além disso, o Sr. Bruce, dono da Cafeteria, não podia sonhar em perder um freguês por minha causa.
Confuso porque era ela. E eu estava contente e inquieto ao mesmo tempo.
Quando o fim do meu expediente chegou, tranquei a porta dos fundos da cozinha.
Era sábado.
Eu fiquei responsável pela Cafeteria.
E ela estava lá.
Admito que comecei a rir sozinho quando os fatos se concretizaram na minha cabeça. Provavelmente de desespero. Precisei estralar os dedos bem mais que três vezes até criar coragem de andar em sua direção.
Mas a garota não estava concentrada nos livros e cadernos de anotação como nas outras vezes. Sequer mordiscava uma das canetas. Cheguei a tempo de ver uma delas rolar e cair no chão. Ela estava debruçada em cima da mesa, em cima de todo o material, dormindo.
A situação se mostrou tão cômica e inusitada que eu não soube o que fazer. Chegando mais perto, consegui ver o óculos pendendo desajeitadamente do rosto amassado pelo livro e o cabelo espalhado pela mesa.
Ainda surpreso, decidi terminar todo o trabalho antes de acordá-la. Colocar as cadeiras em cima das mesas, apagar as luzes do fundo e trancar a cozinha, limpar o balcão com um pano meio-úmido e conferir a tranca dos cofres. Só então voltei à mesa quatro.
Parado ao lado da garota-de-óculos, vi o jaleco jogado em cima da mochila. E pela primeira vez em muito tempo, ele parecia amassado e não tão brilhante.
Com o maior cuidado possível e rezando mentalmente, pus a mão sobre o ombro da garota. Era estranha a sensação. Balancei uma vez bem devagar. Duas vezes. Mais uma. Quatro, cinco vezes, mas a garota não deu sinal de vida.
Comecei a sacudí-la mais forte, chamando-a, mas não deu resultado. Comecei a ficar preocupado de verdade quando a balancei pela vigésima vez.
Mas, finalmente, com um murmúrio baixo, ela se mexeu. Fiquei tão aliviado que me joguei na cadeira ao seu lado. A garota ainda demorou alguns segundos para levantar a cabeça. Ela franziu as sobrancelhas, coçou os olhos, ajeitou o óculos, passou uma mão pelo cabelo, olhou ao redor ainda sonolenta e se voltou para mim.
— O-oi — Ótimo. Estrague tudo de novo.
A garota parecia confusa ao olhar para os livros na mesa e o lado de fora da Cafeteria.
— Você está bem? — Consigo perguntar. — Você meio que apagou por alguns minutos.
— Estou. Eu... — A garota enfiou as mãos por baixo do óculos, apertando os olhos. — Estou bem, desculpe.
— Não tem que se desculpar.
Só quando a garota deixa as mãos caírem no colo, percebo as manchas escuras debaixo dos olhos. Seu olho ainda estava inchado e vermelho pelo sono e sua bochecha direita tinha a marca da lambada do livro.
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Perante Cafés
KurzgeschichtenMiles tem apenas uma missão: servir os cafés da Coffee&Cia. Mas as coisas deixam de ser tão monótonas quando a garota-de-óculos começa a pedir seu Caffè Mocha com frequência.