Era uma vez, uma pessoa que não era eu...
Um carro parado numa estrada de terra longe de tudo e de todos... Dois homens revesando ao abusar da garota nua quase inconsciente no banco traseiro do carro. Ela tinha se cansado de gritar, lutar, de se defender contra aqueles dois que já se encontravam prestes ao término do ato.
Ela se via se desfazendo dentro de si, se desfazendo de sua mente, de seu corpo para não mais sentir o cheiro deles dois, do seu sangue. Não queria mais sentir aquela dor que ao longo de duas horas sentia. Ela se via batendo o ponto com ódio no coração e entrar na produção já recebendo ordens sem nexo algum da líder.
- Ahh Fer, sua vagabunda, olha o que você faz comigo.
O nojento ergueu a cabeça inerte da garota e roçou o pênis entre os lábios da garota que arduamente reprimia todos os gemidos de dor que o outro homem lhe causava. Com dois dedos abriu a boca dela e a forçou a um sexo oral repleto de palavras "motivadoras" para a menina que olhava para toda aquela cena em apostasia de si mesma.
O cheiro naquele carro lhe embrulhava o estômago, o homem cada vez mais violento lhe instigava a desistir de si mesma, mas por um relés segundo ela se lembrou dos seus sonhos.
Por mais que ainda não estivesse fazendo faculdade de finanças, Fernanda se lembrou que aquilo era seu sonho, aquilo que ela passou anos estudando para abandonar por fim. Lembrou-se de todos os amores que ela ainda se apaixonaria, as amizades que faria, os lugares que frequentaria, as muitas bocas que beijaria. Ela se lembrou de quem ela era.
Um eu que ainda não estava formado... Mas que se encaminhava dia após dia em expectativas frustadas de que um dia tudo possa melhorar.
Num instante, viu que seu serviço não era tão ruim, aquilo era só uma fase.
Sua mãe, por mais que fosse cruel nas palavras, era só nos momentos que ela sentia preguiça de arrumar suas próprias coisas.
E assim, Fernanda sentiu uma esperança tão forte no momento, que puxou o homem que a estuprava para perto, e lhe deu um caloroso beijo na boca.
No segundo seguinte, torceu a cabeça dele, fazendo com que seu pescoço quebrasse. O homem caiu duro, em todos os sentidos, enquanto que o outro em choque, não conseguia agir quando a viu fazer o corpo do colega sair de cima dela.
Ela estava inebriada, como se estivesse possuída por um demônio que lhe dava força para sonhar.
Reginaldo, o mentor do crime que a cobiçava de longos anos finalmente reagiu, a agarrando pelo pescoço e asfixiando com intenso ódio, do tanto quanto um dia ele a "amou".
Ela tateou o banco, em busca do seu palito de cabelo que estava caído em algum canto no banco. Estava cada vez mais pálida, sem forças quando o encontrou e sem dor ou temor, enfiou com todo o seu ódio, nojo e esperança no pescoço dele, tão forte que sentiu as mãos em seu pescoço afrouxarem.
E enfiou de novo, e de novo.
Quando se estabilizou, havia uma poça de sangue no interior do veículo, estava sentada no banco da frente com um cigarro pendurado entre os lábios e o telefone do seu agressor na orelha. O sol da manhã já castigava seu corpo, mas ela nada fazia, apenas aguardava ansiosa pela ligação.
- Polícia Militar, bom dia?
•°•
Com a ligação daquela testemunha do fim da madrugada, a polícia logo se dirigiu ao local do crime quando poucas horas depois de buscas pela garota desaparecida, a própria vítima ligou para o 190 dizendo ter matado seus agressores.
O delegado junto de praticamento todo seu esquadrão estava estarrecidos diante da cena ali entre a plantação de cana de açúcar. Augusto andava inconformado, abaixando a arma ao ver uma garota magra de mais com olhos perdidos fumando seu quarto cigarro enquanto dois homens mortos jaziam no banco de trás.
Ela estava pelada, suja de sangue, mas com um olhar que lhe incomodou todos os sentidos: felicidade, esperança, inocência.
Rapidamente abriu espaço para os paramédicos e suspirou incrédulo de que aquela garota tinha acabado de matar dois homens maiores que ele próprio.
- Quem diabos é você? - sussurrou para si mesmo observando a garota ser amparada até a ambulância.
•°•
Quando enfim em casa depois de um longo dia de exames, eu estava deitada na cama repassando todas as orientações médicas e me motivando a passar por uma bateria de inquéritos na delegacia para depor. Havia um promotor que tentava me acusar de homicídio doloso, frio e cruel contra meus agressores, mas eu não me importava.
Eu tinha sonhos, expectativas... Eu estava VIVA.
Ainda estava com dor e agoniada pelo que me aconteceu, é claro. Dói pensar que possa ter acontecido comigo... Algo que eu passei a vida inteira me preparando para me previnir tinha acontecido, mas se deixar meus medos me dominarem, não serei nada mais que um barco ao léu... Uma vida que não vale a pena ser vivida ou amada.
Não, agora era uma vez uma eu, que começava a ser quem eu realmente sou. Ali com 22, passava a finalmente existir.
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Era uma vez Eu
Short StoryEu caminhava, respirava, com medo fundido em ódio pelo emprego, sem conseguir estudar na faculdade que sonhava, correndo atrás de um futuro que nem nem sabia se eu realmente queria. Era uma vez eu: sozinha em busca daquilo de quem sou. Uma vez eu qu...