Tá.
Eu não saberia escolher entre o Homem de Gelo ou o Flash nem se me dessem a noite inteira pra pensar.
Caio alguma vez já deveria ter dito qual era o seu favorito, só que às vezes ele falava tanto que eu só não queria prestar atenção. Sem muita paciência e com a cabeça no dinheiro que teria que pagar no estacionamento caso demorasse muito, apanhei os dois gibis e procurei pelo caixa entre a imensidão de prateleiras abarrotadas de livros coloridos.
E foi aí que o vi.
Primeiro achei que estava delirando. Que era apenas alguém muito parecido com ele que estava batucando as teclas do caixa entediado.
Alguém com o mesmo corte de cabelo. Alguém com mesmo queixo partido em dois. Alguém com as mesmas sobrancelhas, inclusive com a esquerda mais bagunçada que a outra.
Alguém com aquela mesma cicatriz na testa.
Aquela cicatriz.
Era definitivamente ele.
Senti uma pontada na barriga e eu praticamente caí sobre o balcão, a respiração pesada. Quando subiu o olhar pra mim, tive certeza de que me reconheceu também - não que pudesse ser difícil; alguns quilos a mais e a barba uns centímetros maior eram as unicas coisas que me separavam do Costas adolescente.
Mas ele não pareceu surpreso. Na verdade, assim que ele forçou um sorriso amarelo, tive certeza de que já devia estar me observando desde que entrei na livraria. Era quase hora de fechar, então não tinha mais ninguém ali.
Só eu e ele juntos no mesmo lugar depois de 12 anos desaparecidos.
- Hugo? - perguntei, finalmente.
- Costas. - respondeu, a voz desafinada. Tossiu e se endireitou.
- Tá tudo bem?
- Hã-rã. - Murmurou. Apontou com o indicador para os quadrinhos. - Vai querer nota?
Olhei para os gibis e forcei uma risada, de repente lembrando do porquê estava ali. Balancei a cabeça. Os entreguei fazendo o máximo que podia pra não deixar minhas mãos tremerem demais.
- Tem como embalar pra presente?
Ele assentiu e, devagar, se virou para os rolos de papel pendurados na parede atrás dele. Suas costas estavam tensas quando perguntou qual eu iria querer. Tinha os dedos desengonçados forrando os livros na minha frente, se inclinado o máximo que podia para que eu não conseguisse ver seu rosto. O cabelo dele devia estar mais opaco do que eu me lembrava. Menos liso. Maior.
- Ficou sessenta e cinco - ele disse, finalmente se erguendo de novo. Olhava para meu peito quando colocou uma mecha do cabelo atrás da orelha. Me amaldiçoei por não ter trocado de roupa antes de ir ali, mas não era como se eu tivesse o costume de trocar a roupa fodida da oficina pra ir pra casa depois do trabalho.
Não era como se tivesse algum motivo pra isso. A não ser naquele dia, é claro. Mas era tarde demais, então me contentei em torcer pra que ele não reparasse que, assim como minha blusa, minha calça e meus tênis estavam com rasgos e manchas de graxa catastróficas em um milhão de lugares diferentes.
Me atrapalhei para tirar minha carteira do bolso e entreguei meu cartão de crédito sem querer, mas não tive nenhuma coragem de o dizer para devolver. Quando colocou o cartão na máquina, mordia suas bochechas por dentro.
- Tá morando por aqui? -perguntei.
- Tô... - ele disse. - É crédito?
Concordei com um murmúrio e ele pressionou alguns botões na tela. Virou a máquina pra mim e eu levei duas tentativas pra acertar a senha. Ainda tinha sangue preso no meu dedão do dia em que o martelei sem querer. Torci pra que ele não reparasse também. Me devolveu meu cartão e os gibis numa sacola de papel kraft.
VOCÊ ESTÁ LENDO
É "Lampes" (um conto)
Short StoryDoze anos depois de Costas Borges ter ido para São Paulo. ••• Este livro é uma continuação da obra "Mas que lugar maravilhoso para se morrer". -------- Alerta de gatilho: Sensitivo demais. Todos os direitos reservados. Plágio é crime!