Acordei com o barulho do liquidificador torturando algo na cozinha. Tinha esquecido de fechar as cortinas e o sol estava queimando uma parte da minha perna. Meu travesseiro estava babado e eu molhado de suor quando levantei para ir pro banheiro.
Ainda entorpecido, tentei entrar debaixo da água gelada do chuveiro, mas eu não levava jeito pra aquilo que nem ele. Quase tive um colapso quando os pingos frios bateram nas minhas costas e liguei a água quente de novo.
A porta do quarto estava entreaberta quando saí, um cheiro de fritura passando pela fresta. Depois de me vestir e passar o pente no cabelo, calcei os chinelos e fui para a cozinha.
A TV da sala estava ligada em algum clipe antigo da Taylor Swift. Eu sabia que era ela porque passei muito tempo ouvindo as playlists que ele tinha feito no meu celular depois que vim pra cá.
Em cima de uma das banquetas, Caio se inclinava sobre o balcão repleto de farinha de trigo. Suas mãos brancas socavam uma bolota de massa macia. Hugo estava bebendo a vitamina rosa que tinha feito, o corpo encostado na pia. O “bom dia” deles foi em uníssono antes de eu me sentar na banqueta do lado de Caio.
— O que vocês andaram fazendo?
— Ele disse que eram panquecas — Caio apontou para um dos três pratos cheios de discos dourados. — Mas tá parecendo mais bolinho de tacho.
— Só não deu certo porque eu não tinha o avental que a moça usava no vídeo. — Hugo deu de ombros. Tinha prendido os cabelos no topo da cabeça e pensei em dizer que ele estava idêntico a um coqueiro.
Peguei um dos bolinhos e dei uma mordida nele.
— Esse até que tá boniti...
— Não! — Caio berrou, fazendo meu ouvido zunir. Ele puxou o que restou do bolo da minha mão e o analisou, as mãos indo para a cabeça. Olhei confuso para Hugo e ele escondeu o sorriso com o copo. — Esse não era o seu! Você estragou a minha carinha!
Só depois reparei no desenho feito no bolinho que ele segurava. Acho que engoli um dos olhos ou a boca com minha mordida. Ou os dois.
— Desculpa — eu disse, a boca cheia. Coloquei a mão sobre seu ombro e ele se desvencilhou, agressivo. Seus ombros começaram a saltitar e eu deixei escapar uma risada desacreditada. — Qual é, você vai chorar mesmo, mano?
— Pode ficar com os meus, se quiser, Caio — Hugo disse, se aproximando da bancada e empurrando seu prato para ele.
Caio não respondeu. Fungou, limpou o rosto com raiva e pulou da cadeira. Minha boca tremeu enquanto ele batia o pé para fora da cozinha. Olhei incrédulo dele para Hugo. A porta do seu quarto bateu tão forte que senti o chão tremer.
— Quer vitamina? — Hugo perguntou, casual.
— É de quê?
— Coloquei banana e morango que achei no freezer.
Dei de ombros e ele encheu um copo, o colocando na minha frente. Dei um gole e incrivelmente não vomitei. Hugo se sentou na minha frente e me encarou por algum tempo, a boca bebericando sua própria vitamina ao mesmo tempo que os murmúrios do Caio vazavam pela casa.
— Você não leva nenhum jeito pra isso. — ele falou, finalmente. — Sabe disso, né?
— Eu me esforço. — Foi minha vez de esconder meu rosto com o copo. Bebi todo o líquido de uma vez e teve o barulho de alguma coisa derrubada no quarto do Caio.
— Tenho que ir — ele falou. Se levantou e pegou sua mochila largada ali no canto.
Larguei o copo na pia e o acompanhei até a porta.
— É só pedir pro Seu Zeca abrir lá em baixo — falei. Ele balançou a cabeça.
— Obrigado pelo jantar — ele falou. — Tava horrível, mas o que vale é a intenção.
Sorri, e ele também. Quando apertou o botão do elevador, o chamei de novo.
— Você quer fazer alguma coisa mais tarde, hoje? — perguntei assim que ele se aproximou. — Tava pensando em…
— Isso não vai funcionar, Costas. — Ele cortou, suspirando.
Sorri confuso, apesar de já saber o que estava acontecendo.
— O quê?
— Eu… — Encarou o chão, batendo com a ponta do seu sapato no piso. Balançou a cabeça: — Eu não tô disposto a passar por tudo isso de novo.
— M-Mas você não vai… — eu disse, segurando suas mãos. Não sabia o que fazer. — Eu não sou a mesma pessoa que era antes.
— Ninguém é.
— Então por que… — Gritei, mas parei tão rápido quanto explodi. Respirei fundo e tentei organizar minhas palavras: — Olha só: eu tenho um filho que me detesta, nem um amigo e um time de funcionários que quer minha cabeça decapitada. Não é triste o...
Hugo puxou suas mãos de volta.
— Você fala como se fosse diferente pra mim. Você pelo menos tinha alguém quando chegou aqui; eu vim sozinho e isso nunca, nunca mudou. Sabe quantas vezes meus pais me ligaram desde que pisei aqui? Sabe quantos...
Segurei seus ombros antes que ele começasse a chorar.
— Tá tudo bem, tá tudo bem — falei. — A gente só deu o azar de ter tido pessoas ruins nas nossas vidas. Mas isso não precisa nos definir, tá bom? A gente pode se ajudar. Eu sei que sim.
— E por que a gente deveria, afinal? Como vou saber que você não vai me deixar pra trás de repente, de novo?
Ele finalmente olhou pra mim. Seus olhos estavam vermelhos e aquilo deixou minhas pernas bambas.
Aqueles olhos marejados eram as coisas mais sensíveis que eu já tinha olhado em toda minha vida. Talvez por isso eu o mandava engolir o choro incontáveis vezes quando éramos mais jovens. Que eu o deixava pra trás soluçando tantas tardes e só partia pra minha casa, sozinho. Que eu o xingava tanto toda vez que enxergava qualquer resquício de fragilidade cruzando suas retinas.
Porque a fragilidade me assustava. Me atraía. E, se eu fosse frágil, quem diabos estaria ali por mim?
Ninguém.
— Porque… — Me segurei pra manter a voz firme. — Se tem alguma coisa que eu possa fazer por nós... Por mais minúscula que ela seja, se essa coisa existe, eu quero fazê-la. Eu quero tentar. De novo. Um milhão vezes, se precisar.
Hugo balançou a cabeça quase que imperceptivelmente, olhando para o elevador aberto. Meu peito gritou quando ele deu alguns passos pra trás.
— Pelo menos... — ele falou. — Pelo menos é alguém a mais pra dividir a conta da ração do Mungojerrie.
Meu sorriso foi tão grande que meus lábios rasgaram em alguns pontos. Sibilei algumas coisas, mas não soube o que dizer, então só fiz sinais de jóia com as mãos.
— Eu te ligo mais tarde, tá bom? — ele disse. Balancei a cabeça e ele entrou no elevador, desaparecendo.
Eu não era o tipo de pessoa cuja vida costumava dar certo. E nem você.
Mas se a gente estava junto, ali e agora,
Se a gente tinha se reencontrado — mesmo depois de 12 anos!!! — no meio de uma metrópole,
Se você tinha mesmo acabado de me pedir pra comprar ração pro seu gato,
Aquilo já estava mudando.
Quando fechei a porta, uma lágrima solitária escorreu até meu queixo e pintou o colarinho da minha camiseta.
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É "Lampes" (um conto)
Short StoryDoze anos depois de Costas Borges ter ido para São Paulo. ••• Este livro é uma continuação da obra "Mas que lugar maravilhoso para se morrer". -------- Alerta de gatilho: Sensitivo demais. Todos os direitos reservados. Plágio é crime!