III - Existe algum lugar?

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Em casa, o interfone nunca tocava, por isso levei um susto quando o bipe gritou pelo apartamento naquele fim de tarde. Quase derrubei a travessa de macarrão no chão quando fui passá-la para a mesa, apressado. Limpei o suor da testa e respirei fundo algumas vezes antes de atender.

— Seu Borges? — Zeca chamou.

— E aí — falei.

— “Hugo Dantes”. Conhece?

Ri pelo nariz, meus dedos arranhando a tinta da parede.

— É “Lampes”. Deixa subir.

— Tá bom.

Só percebi o caos que estava aquele apartamento quando me virei de novo para a sala. Os brinquedos infinitos de Caio espalhados entre os dois sofás; o pote de balas sobre a mesa de centro, agora preenchido com salgadinhos pré-históricos; a montanha de louça suja na pia; a camada aveludada de poeira sobre o mármore dos balcões nunca usados. Se o elevador atrasasse, com sorte, teria dois minutos. Era a única vantagem de morar no penúltimo andar. Também tinha o pôr do sol passando pelas janelas e pintando todo o lugar de laranja, mas eu não era muito apreciador desse tipo de coisa.

Chutei as bugigangas de Caio para baixo dos sofás o mais rápido que consegui. Com um saco de lixo numa das mãos, esvaziei a fruteira e catei alguns papéis de bala dispersos pelo chão. Tinha um milhão de embalagens de marmitex debaixo da pia que acabei escondendo numa caixa na área de serviço. Quando fechei a porta de lá, a campainha tocou.

Cherei debaixo dos meus bracos e fiz uma careta. Só que não dava mais tempo de ir pro quarto buscar o desodorante, então destranquei e abri a porta daquele jeito mesmo.

Talvez eu nunca me acostumasse de novo a o ver daquele jeito; tão crescido, mas tão igual a sempre. E por mim estaria tudo bem ter um pequeno ataque cardíaco toda vez que visse seu rosto ou sentisse seu cheiro ou ouvisse sua voz. Estava tudo muito bem.

Ele segurava uma caixa de papelão nas mãos que me entregou antes de entrar, pedindo licença.

— Não repara na bagunça — falei.

— Esse é o tipo de frase que faz todo mundo reparar — ele falou, fechando a porta. Ri nervoso e gritei por Caio, largando a caixa no chão. Estava tão abarrotada com as HQs que quase não fechava.

Caio apareceu ali acanhado, meu telefone nas mãos passando algum vídeo de Minecraft.

— Cumprimenta ele. — falei.

— E aí — Caio sussurrou.

— Oi — Hugo disse, balançando a mão.

— Pedi pro Hugo trazer uns gibis pra você. — Bati na caixa com o pé. Caio abaixou o celular e se aproximou, desconfiado. Seus olhos cresceram quando enxergaram o amontoado de livros.

— Obrigado — ele disse, se curvando sobre ela.

— Nada disso — falei. Me segurei pra não rir do pulo que ele deu pra trás. — Só depois do jantar. E se o seu quarto estiver arrumado...

— Você vai pedir pizza?

Ri nervoso e balancei a cabeça.

— Mané pizza. Fiz macarrão.

Caio não se importou em disfarçar sua careta de nojo. Hugo riu pra dentro e fingiu estar interessado no porta chaves em formato de carro que Caio tinha me dado no dia dos pais.

— Vai lavar as mãos, já tá pronto — falei.

Caio devolveu meu celular desanimado e foi pro banheiro.

É "Lampes" (um conto)Onde histórias criam vida. Descubra agora