II - MAS É CLARO QUE A GENTE SE IMPORTA

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Hugo tinha mesmo me ligado no dia seguinte.

Bem depois do horário que eu previ, mas ligou.

Busquei Caio na sua casa e ele ficou de encontrar a gente na frente do prédio da FIESP.

Meus ombros caíam a cada pessoa diferente que passava pelas portas do local. Por que ele deveria vir, afinal?

Eu era a pessoa que o tinha abandonando naquele lugar terrível mesmo depois de ele ter implorando para eu não ir embora.

Eu era o motivo de ele estar coberto de cicatrizes. De todos os tipos.

Eu era a pessoa que tinha tido um filho com uma mulher pouquíssimo tempo depois de ter me mudado. Pouquíssimo tempo depois de ter dito adeus.

Por que diabos ele iria querer passar algum tempo comigo, afinal?

Ele não deveria querer. Eu não quereria.

Eu era uma bagunça.

— Quem é que a gente tá esperando, pai? — Caio perguntou. Limpei os cantos da sua boca sujos com o vermelho da pipoca doce. Ele se esquivou, porque detestava meus "dedos de lixa".

— Não sei — eu disse. — Não sei.

Mas Hugo acabou aparecendo alguns minutos depois. Me cumprimentou com um aceno de mão e soltou um "Oi" para Caio, que se segurou na barra da minha calça em resposta.

Mas a timidez dele se tornou curiosidade pouco tempo depois que entramos no lugar.

— Onde conseguiu essa cicatriz no braço?

— Fui atacado por uma família de rotwillers quando tinha três anos — ele falou, desviando das pessoas.

— Você sabe karatê?

— Não.

— E o que significa essa sua pulseira colorida?

— É coisa de gay – Hugo deu de ombros. Devo ter rido, mas minha voz ficou perdida na algazarra que estava ao nosso redor.

Caio viu um cara corpulento fazendo algum cosplay de Batman e pediu pra que eu tirasse uma foto dele e de Hugo ao lado do rapaz. Fiquei dividido entre sentir ciúmes e felicidade quando disparei a máquina fotográfica.

Depois de Caio ter nos arrastado até os stands de venda e me feito comprar uma camiseta diferente de cada um deles, a gente finalmente foi embora.

— A gente pode passar no McDonald's? — Caio perguntou, usando minha mão e a de Hugo para se pendurar.

Olhei pra Hugo e ele balançou os ombros, murmurando que não tinha mais nada pra fazer naquele dia.

Como previ, Caio estava mais interessado no playground do que na comida em sí. Assim que nos sentamos numa mesa do lado de fora, Caio enfiou um punhado de batatas na boca, tirou os tênis e se enfiou no playground lotado. Apesar da pouca idade, faltavam apenas alguns centímetros pra ele atingir a altura máxima permitida.

— Quando foi que isso aconteceu? — Hugo perguntou, bebendo seu refrigerante.

— O que, exatamente?

— Tudo.

Suspirei e me joguei sobre o recosto da cadeira, segurando minhas batatas. Era só não estragar tudo. Uma tarefa até que fácil, não fosse o fato de eu ser eu. Enfiei uma batata na boca antes de começar:

— Conheci a mãe dele pouco tempo depois de ter me mudado. Ele nasceu uns dez meses depois. A gente se separou quando ele ainda era bem pequeno, então... Mas não me olha assim, eu pago pensão e tudo...

— Então tá... — ele mastigou seu hambúrguer. Pensei em pedir os picles que ele tinha deixado num canto sobre os guardanapos, mas não pareceu muito normal.

— E como você veio parar aqui? — perguntei, sugestivo.

— Não sei também — ele falou. — Depois que você foi embora... — Parou, olhando para os desenhos coloridos da bandeja. — Não sei. As coisas mudaram bastante. Ficaram bem estranhas. Eu tenho um novo irmão agora, se quer saber. Não gosto dele.

Concordei com a cabeça, porque não soube como reagir àquilo.

— Seus pais não ligaram de você...

— Não. Nem um pouco, na verdade. Estão preocupados demais com o novo Lampes. Não que eu me importe...

Mas era claro que ele se importava. E muito. Ele sempre gostou de toda atenção que ganhava do pai por ser o caçula, então não era difícil de imaginar ele surtando quando percebeu que não era mais seu favorito.

— Meu pai também nunca...

— Ele procurou por você.

— E encontrou — falei. — Sei lá como. Ele me ligou uma vez e pediu pra eu voltar. Depois que eu disse que não, ele sumiu.

Hugo ergueu as sobrancelhas, fazendo bolhas no seu copo.

— Mas tá tudo bem — falei. — Eu tô muito bem sem ele, na verdade. Nem nunca mais precisei ser humilhado por alguém de novo. A não ser pelo meu antigo chefe, mas...

Consegui arrancar um micro sorriso dele, então me senti melhor.

— Alguma vez você... Pensou...

— Eu nunca esqueci — respondi.

Hugo concordou.

— Nem eu. — Sussurrou.

Teve um grito bem alto depois, jogando a cabeça de todo mundo na direção ao castelo onde as crianças estavam brincando. Através da porta do brinquedo, encontrei Caio chacoalhando um garoto e berrando furioso. Derrubei a cadeira quando levantei, correndo até eles. Os pais do garoto me empurraram e puxaram o filho para longe de Caio. Tinha um arranhão no rosto do menino que ia desde a testa até a bochecha, sangue escorrendo e pingando pelo piso macio. Me abaixei diante de Caio e apertei seus braços, meu coração pulando:

— Que é que você fez?

— Ele quebrou meu boneco — Caio disse. Levantou a mão e mostrou a miniatura do Flash que tinha trago, agora decapitado.

— Alguém chama o gerente, pelo amor de Deus! — A mãe do garoto gritou. O pai dele tinha tirado o blazer e o pressionava contra o rosto do moleque. — Esse selvagem atacou meu filho! Chamem o gerente!

Balbuciei algo, mas nada que eu dissesse poderia deixar toda a coisa menos pior. Hugo se aproximou logo depois, dando uns tapinhas nas costas de Caio. Sua mão encostou na minha. Ele perguntou se estava tudo bem. Balancei a cabeça, meus ombros tremendo. O mundo vinha ficando retorcido e minha barriga doía com a imagem da trilha de sangue do garoto. Uma roda de curiosos crescia à nossa volta, vozes ficando muito altas. Achei que fosse desmaiar quando Hugo sibilou pra eu ficar calmo.

Afinal, o quanto dele eu ainda não conhecia?

O quão estúpido eu era por nunca ter imaginado que, algum dia, eu pudesse me sentir seguro do seu lado, e não o contrário, como sempre tentei que fosse?

Talvez ele nunca tivesse sido a pessoa que pensei conhecer. Talvez ele fosse mais forte que isso. Com certeza era.

Mais forte que eu.

Só talvez.

É "Lampes" (um conto)Onde histórias criam vida. Descubra agora