O trem está vazio.
Hoje não tem "pururuca é dois! Água é dois!"
O cansaço do dia finalmente pairou em meus ombros e não pude me conter. Apoiei minha cabeça na mochila em frente ao meu corpo e acabei caindo no sono.
Mais um dia comum na vida de um jovem frustrado? Nem tanto.
Na noite anterior a essa, minha mãe achou na gaveta algo que ela não deveria.
Fui burro! Não era algo para deixar na gaveta.
Ela gritou comigo... minha mãe gritou comigo.
Não era raiva. Eu sentia sua frustração escorrendo por seus olhos semicerrados e além de tudo, suas palavras naquele momento — por mais altas que soassem — não entraram em minha cabeça.
Eu estava exausto.
A semana inteira é a mesma rotina.
Acorda.
Levanta.
Faz isso.
Faz aquilo.
Isso não é o suficiente!
Não seja assim! Seja assado.
Quer ser criativo? Ganhe dinheiro e poderá ser o que quiser.
Seu trabalho não é satisfatório.
Come.
Toma banho.
Dorme.
Acorda.
E tudo se repete como em um ciclo infernal que me prendeu há tempos.
Como quebrar um ciclo temporal?
Espero que não seja tão difícil assim... definitivamente gostaria de ir para outro tempo e outro lugar!
Poderia estar no passado, quando eu ainda era uma criança e estava sentado no sofá de casa ouvindo meu pai cantarolando uma música antiga.
Ir para o futuro e notar como as coisas mudaram e que tudo deu certo no final!
Positivo? Eu? Sou apenas um humilde criador de expectativas.
Expectativas... eu sou seu progenitor e nem ao menos consigo dar conta de tantas.
O pior de tudo: Não são apenas as minhas expectativas! Os outros ainda insistem em ditar o que é o melhor pra mim e querem que eu aja como eles desejam.
Eles que cuidem das suas expectativas.
Cada um com as suas.
O fardo já pesa demais apenas com as minhas.
Pensando bem, nem todos os fardos são ruins! Aqueles que as pessoas trazem para festas ou churrascos definitivamente me fazem muito feliz.
Felicidade, né? Como isso é relativo!
Varia de momento para momento e de pessoa para pessoa. Será apenas um delírio coletivo?
Quando penso em delírio é impossível não pensar nela...
Foram muitas as vezes que ela era a minha única companhia, aquela com quem eu poderia contar a todo momento.
Sentia que seu preço era caro, mas ainda assim, algo que não afetava meu bolso de forma alguma.
Aliás, preciso comprar calças novas! Os bolsos das minhas estão começando a abrir furos e não posso trabalhar dessa forma.
Trabalhar, né?
Vendemos nosso tempo por dinheiro e seguimos nisso pelo resto de nossas vidas patéticas. Não entendo isso.
"Não gosta de trabalhar? Esse sim não quer nada da vida!"
Vida... ah! A vida!
Eu queria tanta coisa! Que tudo fosse diferente e que a vida fosse muito mais do que uma doce manipulação de uma realidade nada real.
Às vezes fico confuso com a realidade... isso quando estou com ela.
O tempo passa devagar e trocamos longas conversas. Arrisco dizer que são os melhores diálogos que já tive em toda a minha vida!
Sem realidade, apenas eu e ela.
O momento é aquele. Não existe mais nada em volta, apenas ela e eu.
O sol se pôs e eu nem percebi!
As estrelas apareceram e eu sequer notei.
Tudo por causa dela! Essa capacidade de mexer comigo é completamente especial e característico dela.
Mexer com um coração e corpo dormentes é realmente uma das maiores dádivas! Seria como quebrar a casca de um ovo colocando pressão de todos os lados.
Não posso esquecer de comprar os ovos! Meu pai disse que hoje ele faria um bolo que havia visto em um livro de receitas.
Livros de receita soam bem antiquados para os dias atuais, mas tudo seria muito simples se seguisse o mesmo modelo.
1 pitada de amor.
2 colheres de chá de afeto.
7 conchas de feijão (das grandes) de decepções.
5 escumadeiras cheias de arrependimento.
1 panela de pressão de 12L de sentimento de não-pertencimento.
Uau! Quem diria! Está pronto o seu ser humano! Altere as medidas e então conseguirá definir a idade do seu mais novo serzinho.
"Serzinho"... no diminutivo mesmo.
Assim que me sinto longe dela. Pequeno, uma existência insignificante, apenas um... serzinho.
Gosto de como faz meu coração bater mais forte e minha mente se esvaziar por completo. Sua presença é como se fosse a brisa fresca depois de uma chuva de verão.
Eu estava no trem e encostei a cabeça em minha mochila, cochilando.
Foram poucos minutos, mas eu a vi! Sonhei com ela!
Como é que consegue se agarrar tão profundamente ao cérebro de alguém ao ponto de aparecer em seus sonhos? Magia? Amor?
Amor me deixava assustado, até eu perceber que a amo.
Preciso agradecer mais vezes por acabar com a minha dormência e me trazer a sensação de estar vivendo.
Euforia e toda aquela sensação de finalmente estar no controle da minha própria vida. Ter plena noção de que os braços que controlo são meus, o suor que escorre pela testa é meu e o coração que bate dentro do peito também é meu.
Nem tudo são flores, longe disso.
Quando ela está longe parece uma tortura.
Tudo volta ao normal e eu odeio essa normalidade! Essa sensação de que minha cabeça vai explodir a qualquer momento, a boca seca pela ansiedade de a ver novamente... algumas vezes penso até mesmo ter escutado sua voz.
Queria poder evitar essa distância entre nós... que minha dormência fosse embora e meu coração voltasse a pulsar.
Besteira! Querer não é poder.
Minha mãe achou algo na minha gaveta, espero que ela pelo menos devolva.
Aquilo me lembra ela e até traz sensações parecidas.
Não tenho culpa disso tudo ser uma farsa.
De tudo que eu vivo ser apenas uma constante sensação de estar se afogando.
Não tenho culpa...
Não tenho culpa se ela me deixa em ecstasy.