Parte III

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Acordei sob um teto de madeira e palha. Havia uma pequena fogueira no centro da Oca já quase apagada.

- Filha? – Um homem que eu não tinha visto saiu das sombras e se ajoelhou ao meu lado.

- Túa. – Me levantei e pulei em seus braços. Aquilo era tão bom.

- Minha filha. – Ele me segurou em seu colo como quando era criança, sua mão alisava meu cabelo.

- Sinto muito pai. Sinto tanto, eu só... eu... – De repente as lembranças do que havia acontecido voltaram de uma só vez e meu coração voltou a pesar e as lágrimas a caírem.

- Tudo bem pequena. Chore, pode chorar. Os deuses também choram sua perda e de toda a aldeia. – Ele secava minhas lágrimas enquanto mantinha meu rosto erguido. – A estação das chuvas começou duas luas antes do previsto.

- O que? Mas... mas e a aldeia?

- Não perdemos quase ninguém. – Ele beijou minha testa. – Agora pode descansar.

- Mas... eu quero sair. Tenho de encontrar Irani. – Funguei enxugando as lágrimas. – E  Acir e Porã? Estão bem? 

- Estão bem. Mas você não pode sair, nem ir atrás dela.

- O que? Por que?

- Aiyra você matou três homens. Isso foi longe demais.

- Pai, eles matariam meus irmãos, seus filhos. Eu os ajudei.

- Se fosse a hora deles então os deuses o teriam levado, se não fosse eles o teriam protegido e sozinhos venceriam sua batalha.

- Eu...

- Você fica aqui. Uma mulher cuidará de você até o dia de seu casamento, até lá não deixará essa Oca.

- Eles iam machucar as mulheres, pegaram Irani.

- Chega! – Ele me empurrou e eu cai deitada. Ele se levantou ajeitando o cocar. – Você é uma mulher e não vive como uma. Saber lutar e caçar já era ruim o suficiente, agora tirar a vida de um igual? É passar de todos os limites.

- Um igual? São monstros tua, eles nos atacaram matariam sem dó.

- Somente um guerreiro, um homem, pode tirar a vida de outro. Você não conhece seu lugar nem seus limites. 

Uma mulher apareceu na entrada, segurando um amontoado de folhas secas. Ela se curvou para o meu pai e sentou-se próximo a mim.

- Ela cuidará de você a partir de agora. Não saíra daqui até que eu permita ou você se case. Até lá, ensine a ela o que uma boa esposa deve ter.

E ele se foi sem dizer mais nada. A mulher me encarou de cima a baixo e colocou as folhas entre nós.

- Separar em tiras iguais. Começar a trançar.

Não a respondi. Queria sair correndo pedir perdão a eles, mas ao mesmo tempo não me arrependia de ter matado eles. Iam matar meus irmãos e eu só os protegi, por que era tão errado? Ninguém me respondeu e acho que ninguém o faria. Estava sozinha com meus pensamentos.

O dia passou em completo silêncio. Não conversamos só traçamos as cestas, tira após tira. Outra mulher nos trouxe comida e água, sair da oca apenas para fazer minhas necessidades e a minha guardiã sempre me acompanhava sem tirar os olhos de mim.

Quando a noite finalmente chegou meus dedos estavam ásperos e parecia ter milhares de saúvas mordendo minhas pernas. Não tomei banho e não quis jantar, apenas me deitei sobre a esteira de palha e deixei que o sono me levasse para longe. 

Iara - A história por trás da lendaOnde histórias criam vida. Descubra agora