O JOGO

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- O que foi? - Jack perguntou, ainda um pouco assustado. - Por que você gritou, Alicce?

- Você não viu? - resmungou. - Volta por onde você acabou de passar, eu vi um corpo morto lá.

- Corpo morto? Eu não vi nada - ele disse, já teclando as teclas para que seu personagem voltasse a andar para trás. - E além disso, isso não é um jogo de terror, qual o sentindo?

- Dá pra você voltar, Jack?

- Eu já estou voltando - e ele voltou, mas não tinha nada além de uma paisagem não muito bonita, já que a qualidade do jogo não era das melhores e ainda por cima ocupava grande espaço no computador de Jack. - Não tem nada aqui.

- Você deve estar no lugar errado, eu juro que vi alguma coisa - Alicce observou a imagem do jogo, o local não estava errado. - Jack, eu juro, tinha um homem morto. O corpo dele estava pendurado em uma corda, como se tivesse cometido suicídio.

- Sabe o que eu acho?

- O que?

- Que você tem lido muitos livros do Stephen King e agora está alucinando.

Não era mentira. A maioria dos livros na estante de Alicce eram do Stephen King, seu escritor favorito. Ela conhecia muito bem os clássicos do horror. Mesmo assim, tinha quase certeza que não estava alucinando.

- Cala a boca, eu sei o que eu vi.

- É, um cara morto em um jogo que supostamente não é de terror.

- Quer saber? - se colocou de pé. - Eu vou pra casa, você que se foda com esse joguinhos idiotas.

- Tchau, Alicce.

Ela revirou os olhos, ajeitou a mochila nas costas e foi embora, deixando seu melhor amigo sozinho mesmo sabendo que tinha prometido que iria passar a noite ali.
Alicce pensou em pedir um Uber, mas a sua casa não era longe e mesmo que o vento estivesse de fazer até a alma tremer não estava chovendo e nem nevando. E pensando por um outro lado, ela estava sem dinheiro, o que ela tinha que ganhou da mesada dos pais naquela semana já tinha gastado umas horas atrás com um hambúrguer e uma Coca-Cola. Não que isso seja ruim, seu estômago agradece mas agora suas pernas vão ter que fazer um mini sacrifício.

- Eu deveria parar de gastar tanto dinheiro com lanche - falou sozinha, enquanto encaixava os fones de ouvido nas orelhas. - Em vez disso, eu deveria começar a guardar pra uma futura faculdade.

Mas era mentira, ela não faria isso.
Alicce respirou fundo e foi pra casa ao som de alguma música dos Beatles, tentando não pensar no que ela viu naquele jogo que Jack está sempre jogando. Só talvez ela tenha que se livrar de alguns livros de terror na sua estante.
Quando chegou em casa, o frio parecia estar mais forte e ela não duvidava que iria começar a nevar. Afinal, o Natal já estava para chegar e com ele vem sempre uma maldita neve. Alicce sempre gostou mais do verão.

- Mãe, pai? - chamou, enquanto fechava a porta, deixando todo aquele frio para trás. - É, pois é, eu ia dormir na casa do Jack mas eu achei melhor voltar para casa. Acho que vai vim uma tempestade de neve por aí.

Nenhuma resposta veio e ela já se deu conta que estava sozinha em casa. Afinal, seus pais sempre foram muito afobados. É o que você ganha quando é filha única. Não tem com quem dividir a atenção dos pais. Mas tudo bem, Alicce nunca reclamou disso e ela sempre espera nunca ter um irmão ou irmã.

- Aonde eles foram? - começou a se perguntar, enquanto tirava o moletom e ligava o aquecedor. Ela não queria que a casa também começasse a congelar.
Alicce tirou o celular do bolso quando se jogou no sofá da sala. Não tinha nenhuma mensagem dos seus pais, apenas uma de Jack a zoando por causa do corpo morto no jogo. Ela ignorou a mensagem e depois de pensar no que faria sozinha em casa se levantou para ir até a cozinha. Seu estômago estava implorando por algo para comer.
Acendendo a luz, ela deu um passo pra trás, seus olhos se arregalaram e ao tentar gritar, ela percebeu que não conseguia, como se não soubesse usar a boca direito. E o seu nariz já não estava mais aguentando o cheiro de carniça, ela podia vomitar alí mesmo e foi o que ela fez. Alicce virou de costas e vomitou o hambúrguer que tinha comido umas horas mais cedo com Jack.
Na sua frente, um homem se pendurava debaixo de uma poça de sangue com uma corda na cabeça. Suas roupas estavam sujas do que parecia lama e pelo estado do seu rosto com um sorriso macabro parecia que ele já esteve muito tempo ali, se decompondo aos poucos.
Alicce limpou o canto da boca e depois prendeu o cabelo em um coque rápido. Piscou rápido várias vezes antes de olhar de volta pro corpo morto. Talvez ela estivesse alucinando de novo, mas o cheiro horrível de morte a fazia a convencer de que era real.
Ela continuou encarando, tentando não vomitar de novo. Mas era difícil já que o cheiro tinha se misturado com o cheiro do vômito.
De repente, a luz se apagou e Alicce começou a tremer, mas não era por causa da neve que ela podia ver que tinha começado a cair lá fora pela janela. A luz voltou tão rápida quanto foi embora e o corpo não estava mais lá pendurado, mas a poça de sangue estava.
Ela tomou um choque de realidade quando seu celular tremeu dentro do bolso da calça. Era Jack, tinha enviando uma mensagem de áudio.

- Alicce? - a voz dele saiu do telefone, quebrando o silêncio da casa. - Você está certa, eu estava jogando e acabei encontrando o corpo morto mas ele sumiu do nada. Que merda será que é essa? Eu pesquisei na internet mas não apareceu nada.

Seus dedos tremeram e o celular acabou escorrendo da sua mão, caindo bem do lado do vômito. E falando em vômito, seu estômago se embrulhou e ela tinha certeza de que iria vomitar outra vez. Mas de repente, ela escutou um barulho familiar. Era o carro do seu pai.

- Mãe, pai!

Ela se virou para sair mas o corpo estava ali de volta, só que em vez de pendurado estava caído no chão todo torto, como se não tivesse osso algum. E talvez realmente já não tivesse.
Dessa vez Alicce gritou e o homem morto se mexeu, foi se levantando com cuidado com aquele sorriso macabro que era cheio de poucos dentes amarelos.
Quando ela se deu conta, o corpo já estava em pé, andando como um zumbi, bem devagar.
Alicce começou a andar para trás, também em um ritmo devagar, enquanto tentava recuperar todo o ar que tinha perdido por causa do medo. Na verdade, ela ainda estava com medo. Então, Alicce sentiu algo molhar as meias nos seus pés. Ela deu uma leve olhada para baixo e viu que estava na poça de sangue. Quando olhou para o homem de novo, ele parecia estar caminhando mais rápido e aquele sorriso não abandonava seu rosto. Ela começou a se perguntar o que era tão engraçado. Enquanto ele sorria, Alicce já estava com milhões de lágrimas sobre suas bochechas e parecia que não tinha mais ar alguns em seus pulmões. E os seus pés encharcados com o sangue de outra pessoa estavam presos no chão.
O homem parou de andar e na mesma hora ela conseguiu escutar a voz de Jack, seu melhor amigo, vindo de algum lugar.

- Sabe de uma coisa, Alicce, não era um homem morto que eu vi no jogo, parecia você.

Como se fosse impossível, o morto abriu um sorriso maior, enquanto tirava a corda do pescoço para amarrar no pescoço de Alicce.

. . .

- Não achamos nenhuma carta de suicídio - ela disse, tentando não chorar e deu um gole da xícara de chá. - E mesmo assim a polícia...

- Querida, é meio difícil mas a nossa filha se foi - ele interrompeu. - Eu também sinto a falta dela mas agora ela tem que descansar em paz.

- Mas por que, amor? - sem aviso as lágrimas saltaram dos seus olhos. - Ela tinha uma vida feliz, não tinha? Aonde foi que eu errei? Por que minha menina se matou?

- Eu não sei.

As lágrimas se transformaram em um soluço alto e ele a abraçou com força.

- Eu espero que a Alicce esteja feliz agora aonde quer que ela esteja. Deve ser um lugar bom.

Em nome do diaboOnde histórias criam vida. Descubra agora